04/04/2012 :: Doenças da pobreza: um desafio intersetorial para o Brasil
Renda, educação, moradia, alimentação, saneamento. Estes são alguns dos determinantes sociais de saúde, que deve ser entendida como o direito a ter plenas condições de viver. Políticas públicas que assegurem estes determinantes estarão efetivamente contribuindo para a garantia do direito à saúde da população, em especial das pessoas que vivem em condições de extrema pobreza.
Neste contexto, Tânia Araújo-Jorge, diretora do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que há, sim, doenças decorrentes da pobreza e que, por causarem de alguma forma exclusão socioeconômica, acabam contribuindo para que a pessoa continue em situação de pobreza. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Panamericana da Saúde (Opas) se referem às doenças da pobreza como “doenças infecciosas da pobreza”, mas são também conhecidas como “doenças tropicais” ou “doenças negligenciadas”.
Segundo Tânia, a situação se complica quando há a co-incidência de doenças da pobreza e de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, o que fragiliza ainda mais a população afetada.
A pesquisadora ressalta a importância do controle social das doenças da pobreza, e diz que o enfrentamento da questão pressupõe a mobilização não só da sociedade civil, como também de órgãos e instituições de pesquisa.
Rede Mobilizadores - De que maneira a saúde deve estar inserida nas políticas públicas de combate à miséria?
R.: Há pouco mais de 25 anos, no documento com que se encerrou uma das mais importantes reuniões da Organização Mundial da Saúde (OMS), conhecida como Carta de Ottawa, a saúde ficou entendida como um recurso para a vida e não como um objetivo de viver. Ter saúde não é só não estar doente, mas ter plenas condições para viver.
Decorre daí a compreensão de que há determinantes de saúde que são sociais, como a renda, a educação, a moradia, o saneamento e a alimentação, por exemplo, além dos fatores estritamente biológicos e ambientais. Por isso, se as políticas públicas que combatem a miséria estiverem dirigidas a melhorar efetivamente o nível de renda das pessoas, lhes dar maior acesso à educação, à habitação digna e em condições ambientalmente saudáveis, lhes assegurar o direito à alimentação de qualidade e em quantidade suficiente, elas estarão contribuindo diretamente para a melhoria da saúde das pessoas que ainda vivem nessas condições de extrema pobreza.
Portanto, a saúde se insere nas políticas de combate à miséria de duas formas. Primeiro através do efeito que estas políticas têm sobre esses determinantes sociais [renda, educação, moradia, alimentação etc]. E também através de ações integradas a estas políticas, ou seja, da associação de ações de melhoria do acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e do enfrentamento de agravos que atingem com mais freqüência, e de forma mais grave, as pessoas pobres.
Rede Mobilizadores - Pode-se dizer que há doenças resultantes da pobreza e também doenças geradoras de pobreza? Por quê?
R.: Sim. As doenças geradoras de pobreza são justamente aquelas que são fortemente afetadas por esses determinantes que citei anteriormente. São doenças geradas pelas condições de pobreza e que realimentam a condição de pobreza. Elas não são só decorrentes do fato de as pessoas serem pobres, mas sustentam sua dificuldade de romper a barreira da pobreza. Exemplos como a tuberculose e a hanseníase, ou como a doença de Chagas, que por causarem, muitas vezes, algum tipo de incapacidade ou desfiguração, reduzem a capacidade de trabalho, geram estigma e discriminação social nas populações afetadas, e trazem como consequência o alijamento social e do mercado de trabalho.
Pode-se quantificar esse processo, medindo-se a perda de produtividade dos indivíduos, famílias, comunidades e nações. Pessoas com saúde precária e deficiências incapacitantes são menos produtivas do que as demais, afetando a produtividade geral, e têm menos chances no mercado de trabalho, fechando o ciclo de pobreza e excluindo cada vez mais estas populações.
Em Belém, no Pará, cardiologistas identificaram famílias que passavam fome quando o chefe da família era hospitalizado por doença de Chagas, ficando sem condições de trabalhar e tendo de ingressar no Programa Bolsa Família.
Em Campos, litoral norte do Rio de Janeiro, crianças deixam de ir à escola por sofrerem dos sintomas das parasitoses intestinais mais simples, evitáveis por medidas de saneamento e de educação em saúde. A cegueira pode ser causada por tracoma [doença oftálmica causada pela bactéria Chlamydia trachomatis], por toxoplasmose [doença causada pelo protozoário Toxoplasma gondii] e por oncocercose [doença provocada pelo parasita nematódeo Onchocerca volvulus], infecções de fácil disseminação, mas com tratamentos disponíveis e viáveis, dependendo, para isso, de acesso das pessoas ao serviço de saúde e de uma boa qualidade de atendimento, diagnóstico e atenção.
Velhas doenças já controladas reaparecem através de novos mecanismos de transmissão, como as micoses nos pacientes com HIV, a tuberculose multirresistente nas aglomerações humanas das grandes cidades, ou a leptospirose e as verminoses depois de enchentes; as verminoses transmitidas pela terra acometem quase 80% dos escolares dos municípios de baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Como afirmou recentemente Jarbas Barbosa, secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, o adulto que adoece reduz sua produtividade no trabalho, e as crianças que adoecem aproveitam menos a educação.
Rede Mobilizadores - Qual a prevalência destas doenças entre as populações de baixa renda? Sua prevalência é maior em que grupo populacional?
R.: Essas doenças se relacionam, em grande parte, com as chamadas “doenças tropicais”, também conhecidas como “doenças negligenciadas”. Atualmente, a OMS e Organização Panamericana da Saúde (Opas) se referem a elas como “doenças infecciosas da pobreza”.
Sua prevalência é estimada por estudos em segmentos da população que possibilitam, depois, estimativas para a população total, mas nem sempre muito precisas. Quantitativamente, as mais relevantes no Brasil hoje são: em 1º lugar as Geohelmintoses, que juntas devem estar infectando 93 milhões de pessoas que têm “lombrigas ou bichas” (Ascaris = 41.7 milhões, Ancilostomo = 32.3 milhões, Trichuris = 18.9 milhões); em 2º lugar as anemias carenciais, que atingem 3 milhões de crianças menores de cinco anos, 15 milhões de mulheres de 15 a 49 anos e 10 milhões de crianças em idade escolar.
Em 3º, aparecem as parasitoses intestinais, que, se assumirmos uma prevalência média de 30%, vão infectar cerca de 15,4 milhões de crianças em idade escolar, variando muito de local para local, com incidências que vão de 1 a 80%.
Em seguida, aparecem endemias que foram parcialmente controladas, mas que ainda atingem portadores crônicos na ordem de milhões de brasileiros. Sendo assim, em 4º lugar está a doença de Chagas, com 3 milhões de portadores crônicos; em 5º, a esquistossomose, com 2 milhões de portadores crônicos, e em 6º, o tracoma, doença causada por uma infecção bacteriana que se previne apenas com a lavagem de mãos e que, se não tratada com antibióticos, pode levar à cegueira. A prevalência estimada, em 2003, era de um milhão de pessoas.
Depois, estão as doenças na faixa de dezenas e centenas de milhares de casos, como a malária (em 7º), que registrou 600 mil novos casos em 2010; as leishmanioses (em 8º), com cerca de 500 mil casos, e cuja forma mais grave - a leishmaniose visceral - vem registrando 5 mil novos casos por ano; a Dengue (em 9º) , com 227 mil casos notificados em 2010; a tuberculose (em 10º) , com 85 mil novos casos em 2009, a hanseníase (em 11º), ainda com 47 mil novos caso por ano; a filariose (conhecida como elefantíase, em 12º), com estimativa de 60 mil infectados; a febre reumática (em 13º), com uma estimativa de 30 mil pessoas por ano. Temos ainda a oncocercose, em fase de eliminação, com apenas 1.200 casos mapeados na área indígena Yanomami.
A associação destas doenças à pobreza é segura, como mostram estudos em diferentes países, mas o cruzamento sistemático de dados epidemiológicos de prevalência de todas essas doenças com dados socioeconômicos ainda não foi feito no Brasil. É um dos desafios atuais.
Como viram, inclui, entre as doenças da pobreza, as relativas à subnutrição, como as anemias carenciais. Elas são causadas por baixa ingestão de alimentos ricos em ferro, como fígado, carne, ovos, feijão, verduras e legumes, necessários para a produção de glóbulos vermelhos, ou também por perdas de sangue, que podem ser decorrentes de verminoses, de hemorragias ou de alcoolismo.
Verminoses e outras infecções retroalimentam anemias carenciais e vice-versa. As anemias também podem ser agravadas por infecções crônicas, câncer ou doenças inflamatórias, sendo a artrite reumatóide e a tuberculose as mais importantes. Portanto, um problema sério é co-incidência de diversos agravos na mesma pessoa.
Rede Mobilizadores - Em que regiões do país estas doenças estão mais presentes? Em linhas gerais, qual o contexto socioeconômico destas regiões?
R.: Essas doenças são mais presentes onde a pobreza é mais presente. Na região Nordeste, por exemplo, que concentra cerca de 60% da população em situação de pobreza extrema, ou seja, onde uma família de cinco pessoas vive com menos de 350 reais por mês. É no Nordeste também que a incidência de AIDS está crescendo, enquanto no resto do país já está caindo. É lá que se concentram também os casos de filariose, de esquistossomose, de hanseníase.
Mas a tuberculose, por exemplo, se espalha e está presente em qualquer situação de aglomeração de pessoas em situação de pobreza. Na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, os indicadores de tuberculose, tanto em risco como em incidência, são cinco vezes maiores do que em outros bairros da mesma cidade. Portanto, de modo geral, é o contexto socioeconômico que define se a região ou microrregião é favorável ou não à expansão dessas doenças.
Rede Mobilizadores - Como os dados do mapeamento das doenças associadas à pobreza no país, realizado pela Fiocruz, estão sendo usados pela equipe do Plano Brasil Sem Miséria? A Fiocruz vai continuar a colaborar? De que forma?
R.: A Fiocruz apenas descortinou o problema com um mapeamento incompleto. O estudo será feito em parceria com os Ministérios da Saúde e de Desenvolvimento Social, pois precisa cruzar bancos de dados.
Num primeiro exercício, no estado de Pernambuco, onde há um programa estadual de enfrentamento das doenças negligenciadas que foca seis delas, buscamos associar os dados regionais de incidência dessas doenças com as cidades com maior número de pessoas em situação de pobreza, tal como identificados para o Plano Brasil sem Miséria. Com a expansão desse estudo, pretendemos dar instrumentos para que o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais possam atuar com prevenção, tratamento de agravos, e promoção da saúde, em paralelo ao trabalho da assistência social de inclusão das pessoas nos programas de transferência de renda.
Rede Mobilizadores - É possível afirmar que o fato de estas doenças ainda existirem no país e até mesmo estarem reaparecendo é resultante da falta de investimentos em sua prevenção e controle? Comente.
R.: Não podemos falar de falta de investimentos, pois o Brasil tem investido tanto em prevenção e controle das doenças negligenciadas como em pesquisas e desenvolvimento tecnológico sobre esse tema. O problema do país é o grande passivo socioeconômico que gera a enorme desigualdade que vivemos.
Os economistas utilizam um indicador de desigualdade para comparar regiões e nações, o índice de Gini, e no quadro global dos últimos 50 anos, o Brasil despontava como o país mais desigual do mundo no ano 2000. Os 10% mais ricos da população brasileira são donos de 46% do total da renda nacional, enquanto que os 50% mais pobres, que são 87 milhões de pessoas, ficam com apenas 13,3%. Ainda temos 14,6 milhões de analfabetos, e pelo menos 30 milhões de analfabetos funcionais, e da população de 7 a 14 anos que frequenta a escola, menos de 70% concluiram o ensino fundamental. Na faixa de 18 a 25 anos; apenas 22% terminam o ensino médio.
Os negros são 47% da população brasileira, mas correspondem a 66% do total de pobres. O rendimento das mulheres ainda é apenas 60% do rendimento dos homens no mesmo posto de trabalho. Tudo isso caracteriza o quadro da desigualdade extrema no Brasil. Por isso, esse esforço feito na ultima década tem que ser louvado. Ele mostra que o Brasil conseguiu retirar 40 milhões de pessoas da faixa da pobreza, mobilizando políticas públicas específicas que tiveram sucesso devido a um ambiente que combinou: 1- crescimento econômico, 2- elevação do salário mínimo, 3- controle da inflação, 4- acesso ao crédito, e 5- ampliação de programas de transferência de renda. Isso não é pouco, e certamente vem ajudando a reduzir o impacto destes determinantes sociais na saúde dessas pessoas.
São decisivas as políticas que ampliam a renda, o acesso à educação, ao saneamento e à moradia. É isso que, associado às medidas de saúde relativas à prevenção, atenção e promoção da saúde, explica a redução do impacto das doenças infecciosas na mortalidade da população, que, há 50 anos, era de mais de 50% e hoje é de menos de 5%.
Foram as mudanças no quadro econômico, com o forte desenvolvimento registrado no país, somadas às políticas de vacinação e controle de vetores, de acesso gratuito a antibióticos, hidratação oral e outros medicamentos e, mais recentemente, de acesso à promoção da saúde, com alimentação, exercícios físicos, atividades culturais, entre outras, que reverteram esse quadro. Hoje, doenças crônicas como hipertensão, diabetes e câncer assumem maior peso nos indicadores de mortalidade da população. Mas nosso problema é que elas se superpõem a doenças antigas que o desenvolvimento socioeconômico brasileiro ainda não resolveu, como as que eu citei antes. Por isso, é necessário foco no enfrentamento desses problemas de saúde.
A extensão do problema das doenças infecciosas da pobreza no Brasil é totalmente incompatível com o papel estratégico que o país pretende exercer no cenário mundial, a partir de sua inserção como 6ª maior economia global. O enfrentamento dos problemas da pobreza extrema não é apenas uma questão de dívida histórica com parte da população brasileira - o fechamento de uma agenda inconclusa que mantém no século 21 os problemas do século 19 - mas é também um componente essencial da soberania nacional no futuro que se desenha no momento.
Rede Mobilizadores - Neste cenário, qual o impacto do tratamento destas doenças no sistema público de saúde do país? Que políticas devem ser implantadas com maior urgência para fazer frente ao problema?
R.: Identificar, diagnosticar e tratar as pessoas que são portadoras dessas doenças em fase crônica é um imperativo ético, precisa ser feito porque é um direito de cidadania que lhes foi subtraído. Mas não basta tratar; é preciso educar e prevenir, e isso depende da condição socioeconômica das pessoas. Por isso, o problema de saúde não é só da saúde, é intersetorial, depende da educação, da infraestrutura das cidades, dos serviços públicos, e da oferta de postos de trabalho para geração de renda.
Mas, se o Brasil conseguir ter sucesso na redução das taxas de algumas dessas doenças, vai realizar um grande feito. O sanitarista João Carlos Pinto Dias falou, numa de suas conferências, que o principal instrumento de controle das doenças endêmicas era o aumento do salário mínimo e uma habitação digna. Enquanto isso não acontecesse, as políticas públicas de prevenção e tratamento das doenças da pobreza chegariam a um limite. Agora que temos essa chance, com o Plano Brasil sem Miséria em nível de prioridade governamental, não podemos desperdiçá-la. Devemos somar os esforços da saúde aos da educação, aos do saneamento, aos da infraestrutura urbana, e tantas outras políticas que podem definitivamente impactar nos determinantes sociais da saúde.
Assegurar que esse tema passe a fazer parte dos currículos escolares, que a consciência sobre esse problema se expresse no dia a dia das famílias pobres, que a luta por seus direitos se consolide e que nos espaços de participação ela se reafirme, são passos indispensáveis no momento atual.
Mas é importante frisar que nada disso pode avançar se o problema do subfinanciamento da saúde não for resolvido. Esse é um tema maior, que envolve a questão da distribuição dos recursos públicos, as decisões sobre como e quanto se mantém em pagamento de juros da dívida pública, que atualmente consomem cerca de metade da riqueza produzida no Brasil e que restringem o volume de recursos que podem e precisam ser destinados à saúde, à educação e à seguridade social em geral.
Rede Mobilizadores - E quanto à obesidade, que cresce em níveis alarmantes inclusive entre crianças e jovens do país? Até que ponto também é uma doença associada à pobreza?
R.: Pois é, essa pergunta traz à tona a combinação das três transições que vivemos na saúde atualmente: a transição epidemiológica, a transição demográfica e a transição nutricional. Da epidemiológica eu já falei quando se constata que os brasileiros hoje morrem mais de câncer, doenças cardiovasculares e outras doenças crônicas do que de doenças infecciosas.
A transição demográfica é percebida pelo aumento do numero de pessoas com mais de 60 anos, que nos aponta um envelhecimento global da população devido ao aumento do tempo de vida e à redução da fecundidade e da natalidade no Brasil.
Quanto à transição nutricional, no país, a desnutrição, que era medida pelo percentual de crianças com menos de 5 anos que tinham peso abaixo do esperado para a idade, caiu de 7 %, em 1974, para 1,8 %, em 2006. No que se refere à altura, isso também foi expressivo, caindo de 22% para 6,7%, no mesmo período, o numero de crianças com estatura abaixo do indicado para sua idade. Mas, junto com isso, surgiram os dados sobre obesidade e sobrepeso, que aumentam em todas as faixas etárias, até mesmo entre crianças de 5 a 9 anos.
Poderíamos pensar que, nesse caso, não haveria uma associação direta à pobreza, pois a obesidade vem, de fato, acontecendo em todos os estratos sociais. Mas, desde 1989, quando a Pesquisa Nacional sobre Saúde e Nutrição mostrou 32% dos adultos com excesso de peso, também foi apontado que havia maior prevalência de obesidade em mulheres pobres da região Sudeste do país.
A obesidade é multifatorial, depende de fatores genéticos, metabólicos, endócrinos, nutricionais, psicossociais e culturais. E como a obesidade é um atributo físico, percebido no corpo das pessoas, ele também é interpretado e influenciado pelo sistema social. Quem tem estudado essa relação entre obesidade e pobreza tem relatado uma complexidade, que inclui aspectos culturais e materiais de vida, bem como diferentes concepções de alimentação e de corpo. Com maior acesso à renda e imersa numa sociedade que cultiva o consumo, sem os necessários cuidados preventivos, a população vem comendo mais, porém vem comendo mal, e passa a estar não desnutrida, mas malnutrida.
Aqui, passam a ser essenciais as medidas de educação popular e escolar, com ampla disseminação das conseqüências da obesidade decorrente de má nutrição, com desconstrução da cultura da alimentação desequilibrada e da alta ingestão de carboidratos e gorduras. Assumem importância também as políticas de reeducação das instituições que recebem as crianças, com políticas para equilíbrio nutricional no perfil da merenda escolar e dos restaurantes corporativos.
O problema é claramente de âmbito cultural e precisa de intervenções culturais para ser enfrentado. Mais uma vez, a questão da intersetorialidade é central. Não é um simples problema de saúde, nem do setor saúde. A indústria alimentar, a mídia, a família, e, sobretudo, as condições de vida das mulheres de famílias pobres - com más condições de moradia, poucas áreas de lazer, escolaridade baixa e menos dinheiro para comprar alimentos que compõem uma dieta saudável, como frutas e verduras - são alguns dos fatores que levam ao aparente paradoxo da obesidade associada à pobreza.
A rotina atribulada com afazeres domésticos, cuidados com os filhos e a alimentação da família, o trabalho formal e os escassos recursos para aderir aos principais instrumentos de prevenção e combate à obesidade, como espaços para lazer e exercícios e acesso a alimentos mais nutritivos, concorrem para essa verdadeira epidemia de obesidade e sua maior incidência entre mulheres pobres.
Rede Mobilizadores - A saúde pública no Brasil está preparada para lidar com a obesidade e com as doenças dela decorrentes, como diabetes e hipertensão? Comente.
R.: Estamos numa corrida contra o tempo, pois essas são doenças crônicas relacionadas a hábitos de vida. Com a cultura da medicina curativa, em que as pessoas procuram o sistema de saúde quando já estão doentes, o problema só se agrava. Enquanto a busca de solução para doenças predominar na conduta das pessoas e na estrutura do sistema de saúde, o problema se mantém.
Quando a população inverter o fluxo, e buscar saúde no SUS, em vez de remédio para doença, talvez possamos falar no novo patamar de preparação da saúde publica para lidar com esses problemas referentes à obesidade, diabetes e hipertensão. Por isso, é essencial que os postos e centros de saúde se transformem em centros de promoção da saúde, da alegria, do prazer de viver. E, na minha opinião, isso depende de uma mudança de cultura e de gestão na atenção básica, com maior oferta de serviços de promoção de saúde, oportunidades de exercícios físicos, relaxamento, criatividade, prazer, alegria.
Eu costumo dizer que pílulas de poesia podem ser mais poderosas que medicamentos e agrotóxicos. E quero registrar aqui que percebemos, no Rio de Janeiro, o fortalecimento deste movimento, com um impulso para essa mudança cultural a partir do trabalho do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde. O grupo tem trabalhado nessa perspectiva e está organizando um amplo movimento comunitário de Escolas Populares de Saúde, focando na promoção da saúde e na comunicação para prevenção das doenças da pobreza. Um trabalho singular e importantíssimo.
Rede Mobilizadores - Neste sentido, qual sua opinião sobre a 1a Semana de Mobilização Saúde na Escola, com o tema obesidade entre crianças e adolescentes, realizada pelo Ministério da Saúde em escolas públicas de todo o país?
R.: Essa associação entre saúde e educação é essencial. O Programa Saúde na Escola deu um passo decisivo para isso, levando a equipe de atenção básica das localidades, bairros ou municípios, para atuar conjuntamente nas escolas. A idéia de realização dessa 1a Semana de Mobilização Saúde na Escola, que está ocorrendo este ano, é muito boa, pois introduz na agenda das escolas e do sistema de saúde essa questão tão relevante que é o enfrentamento da epidemia de obesidade em crianças e jovens.
Espero que essa iniciativa frutifique e dê origem a muitas outras. A Escola é um excelente local para se alavancarem mudanças culturais, pois as crianças podem influenciar as famílias e podem mobilizar a comunidade. As estratégias de combate à dengue que se desenvolvem nas escolas têm contribuído muito para a conscientização sobre este problema. Essa mobilização vai fazer muito bem para todos.
Rede Mobilizadores - Na sua opinião, de que forma a sociedade civil poderia exercer maior controle e fiscalização sobre o combate, prevenção e tratamento de doenças associadas à pobreza?
R.: As doenças associadas à pobreza são invisíveis, atingem um segmento da população que tem baixa participação política e que, por isso mesmo, também é invisível. Até agora, as principais políticas de controle das antigas endemias rurais, que hoje se apresentam como doenças associadas à pobreza, dependeram em grande parte da comunidade cientifica e de sanitaristas que militaram ativamente por essas medidas.
Hoje, há algumas novidades no cenário, pois já existem associações de portadores crônicos de algumas dessas doenças, como a doença de Chagas, a tuberculose e a hanseníase. Essas organizações da sociedade civil vieram a pautar os agentes públicos e a reivindicar seus direitos à saúde, ao tratamento, aos beneficio previdenciários, entre outros. Do mesmo modo, acho que também as sociedades científicas, universidade e institutos de pesquisa que trabalham sobre esses temas devem se mobilizar, como estamos fazendo no Instituto Oswaldo Cruz, e atuar em conjunto, para avançar no enfrentamento dessa questão no nosso país.
Entrevista do Grupo Promoção da Saúde
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
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