Comissão da Verdade virou "encenação" para comunidade internacional, diz ativista
Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro defende outra
Comissão da Verdade: "mais autônoma, mais independente e não vinculada
ao governo"
Publicado em 18/09/2011, 14:28
Última atualização às 14:28
São Paulo - Com inúmeras modificações e cercada por pressão de todos
os lados, a Comissão da Verdade pode sair do papel nos próximos meses.
Entretanto, para Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca
Mais, do Rio de Janeiro, caso a comissão seja posta em prática nos
moldes como se encontra, será uma "
mise en scène" do governo
brasileiro. O alvo da encenação, na visão da ativista, seria a
comunidade internacional, já que o Brasil vem sofrendo pressões externas
para investigar os crimes cometidos por agentes da ditadura de 1964 a
1985.
Segundo ela, é melhor que não se faça nenhuma comissão para o resgate
da memória dos crimes da ditadura militar do que fazer da maneira como a
que está se delineando. "Somos a favor de uma Comissão da Verdade. Mas
uma comissão autônoma e independente do governo e diferente desta que
está sendo feita", ressaltou.
A Comissão de Verdade é vista como etapa necessária para resgatar a
verdade histórica do período de repressão, com a responsabilização dos
agentes que praticaram crimes, considerados de lesa-humanidade ou
hediondos, o que os tornaria imprescritíveis. Para Cecília Coimbra, o
formato proposto pelo projeto de lei que cria a comissão não permite
independência nem autonôma suficientes aos trabalhos, o que
comprometeria os objetivos.
Confira a entrevista com Cecília Coimbra:
RBA – O que se espera da Comissão da Verdade da forma como está sendo proposta?
As entidades de direitos humanos reivindicam de diferentes governos
federais a formação de uma comissão da "verdade, memória e justiça",
como ocorreu em outros países latino-americanos que passaram por
recentes ditaduras. O Brasil está sendo o último a discutir essa
questão. Em si, isso já é um problema que a gente tem de levantar e
pensar criticamente.
Esse projeto de lei é muito pior do que foi proposto pela primeira
vez. A Comissão da Verdade continuará sendo anti-democrática. Continuará sendo não autônoma, nem
independente. Continuará sendo totalmente vinculada ao governo federal.
Entre países latinoamericanos que passaram por recente ditadura, o
Brasil é o mais atrasado no processo de reparação. Refiro-me a reparação
em sentido mais amplo, não simplesmente como uma questão financeira.
Para nós, reparação segue o conceito dado pela Organização das Nações
Unidas (
ONU), é um processo de investigar, esclarecer, tornar
público e responsabilizar os responsáveis cometidos pelos agentes do
estado num regime de opressão e que produziram crimes de lesa
humanidade.
RBA – Por que se critica a forma com que os textos da atual comissão foram decididos?
Essa é uma comissão extremamente limitada e perversa. Ela veio no
bojo do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), durante o
governo Lula, em dezembro de 2009 (
que desencadeou reações de setores conservadores da sociedade).
Essa questão tinha aparecido por sugestão de várias entidades de
direitos humanos na Conferência Nacional dos Direitos Humanos, realizada
em 2008.
No PNDH-3, foi colocada a questão da comissão, muito em função das
sugestões que tinham sido feitas na conferência. Entretanto, a comissão
foi colocada em uma perspectiva limitada, vista pelas entidades sob
aspecto crítico, porque se colocava como uma comissão não autônoma e não
independente do governo federal. Ao contrário, a proposta feita era de
uma comissão vinculada claramente ao governo, e somente teria um
representante da sociedade civil se fosse indicado pelas autoridades que
já fosse parte da comissão. Para nós, é um formato extremamente
antidemocrático e prejudicial à independência e ao funcionamento da
comissão.
É preferível que não haja nenhuma comissão do que essa. Da forma como está, vai ser uma
mise en scène
do governo federal diante de todas as pressões internacionais por
investigação. O que estão propondo é uma brincadeira, não é uma
comissão.
RBA – E de onde veio tanta pressão para que ela fosse mudada?Houve
pressão do então ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes das
três Forças Armadas. A pressão foi, inclusive, para o próprio PNDH,
uma chantagem dessas autoridades ao Executivo. O ministro Jobim afirmou
que deixaria o cargo se a comissão funcionasse como estava proposto. O
governo acabou voltando atrás em relação a uma série de questões do
plano, como a comunicação, a questão do aborto, dos movimentos ligados à
reforma agrária, inclusive a comissão da verdade.
Em maio de 2010, foi anunciada uma reformulação do PNDH-3, em função
não só dessa chantagem, mas de outras forças conservadoras que se
levantaram contra o aborto, contra a questão da terra, das comunicações.
RBA – Quais os pontos mais críticos da proposta de Comissão da Verdade em discussão?
O retrocesso foi tão perverso que retirou a palavra "justiça" dos
textos. Ou seja, em momento nenhum vai responsalizar alguém. E eu não
estou falando a palavra punir, mas colocando responsabilização. O que a
gente busca é que os atos criminosos tornem-se públicos, que os nomes e
atos sejam conhecidos e que eles sejam responsabilizados até eticamente.
Nós não somos a Justiça.
Também se retirou a referência ao período de ditadura cívico-militar,
ou seja, o que se dizia anteriormente na comissão era de que faria uma
investigação sobre os crimes cometidos durante o período de 1964 a 1985 e
isso foi retirado da proposta.
Serão investigadas violações de direitos humanos no período de 1946 a
1988, ou seja, violações de direitos humanos todos estão cometendo,
inclusive governos dito democráticos, do pós-ditadura. É como se o
período da ditadura desaparecesse da história do país. Para nós, manter a
restrição ao período é muito importante em relação à memória, pois as
próximas gerações não saberão que existiu nesse país uma ditadura que
implantou o terrorismo de Estado. Esse projeto de lei é muito pior do
que foi proposto pela primeira vez. Continua sendo antidemocrático,
continua sem autonomia, sem independência, vinculado ao governo federal.
RBA – O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro é contra essa comissão, que tem o aval do governo federal?
Somos profundamente contrários a essa proposta de criação de Comissão
Nacional da Verdade por ter limitações perversas, inclusive
desrespeitando a memória do país e tentando ocultar das novas gerações o
que ocorreu efetivamente. A gente quer uma comissão da verdade que seja
autônoma e independente e possa investigar, esclarecer, publicizar
todos aqueles que cometeram crimes durante o período de 1964 e 1985.
Estamos extremamente críticos e um tanto quanto pessimistas. Assim
como na discussão da abertura dos arquivos secretos, com na questão da
Guerrilha do Araguaia, a gente percebe que não há vontade política,
porque todos os governos civis fizeram, ou continuam fazendo, acordos
políticos com pessoas que respaldaram a ditadura. Então, há essa falta
de vontade para se esclarecer efetivamente os crimes cometidos.