Entrevista

Esclerose lateral amiotrófica (ELA)

Dr. Acary Souza Bulle Oliveira é médico, professor de Neurologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, membro titular e secretário-geral da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).
Um amigo de 40 anos estava jogando futebol, como fazia regularmente, quando sentiu a perna travar bem na hora de bater um pênalti. Ele não foi capaz de entender nem de explicar por que, de repente, a perna tinha ficado pesada a ponto de não conseguir acertar o chute.
Infelizmente, esse foi o sintoma inicial da esclerose lateral amiotrófica (também conhecida pela sigla ELA), uma doença que compromete a musculatura e causa deficiência motora progressiva.
Como o próprio nome indica, essa moléstia se caracteriza pelo endurecimento dos músculos (esclerose), inicialmente num dos lados do corpo (lateral) e atrofia muscular (amiotrófica).
Mal descrita até bem pouco tempo, hoje se sabe que a causa é a degeneração dos neurônios motores no cérebro e na medula espinhal. Embora o diagnóstico precoce seja fundamental para retardar a evolução da doença, na maioria das vezes, ele custa a ser feito.
CARACTERÍSTICAS E SINTOMAS
Drauzio – Como o cérebro emite ordens para que um membro faça o movimento adequado na hora de bater um pênalti, por exemplo?
Acary Oliveira – Parece fácil, mas não é. Para a pessoa realizar um movimento, o sistema nervoso central (SNC) emite uma ordem que parte do primeiro neurônio motor (superior), alcança a região do tronco cerebral e dali caminha até medula nervosa situada dentro da coluna espinhal. No corno anterior, ou seja, no segmento da medula voltado para o osso esterno, está o segundo neurônio motor (inferior) de onde saem os nervos da motricidade que transmitem o comando para o músculo esquelético contrair.
Qualquer alteração nesse mecanismo, seja no primeiro neurônio motor situado no cérebro, seja no segundo neurônio motor situado na medula espinhal pode afetar as vias que conduzem o estímulo até o músculo esquelético e ser responsável pelo aparecimento de fraqueza muscular.
Nos Estados Unidos, a esclerose lateral amiotrófica é conhecida como Doença de Lou Gehrig. Os aficionados por beisebol certamente já ouviram falar de Lou Gehrig, um exímio jogador das décadas de 1920/1930. Aos 12 anos, ele conseguia atravessar a nado o rio Hudson que separa a cidade de Nova York do estado de Nova Jersey e, aos 23 anos, era jogador titular do New York Yankees, time com maior número de vitórias da Liga Americana de Beisebol.
Considerado um dos melhores jogadores por anos consecutivos, Lou Gehrig recebeu vários prêmios e, aos 37 anos, encontrava-se no auge da forma física, técnica e emocional. Estava casado, tinha filhos, era famoso e querido pela torcida.
Um ano mais tarde, porém, a Liga Americana de Beisebol divulgou que o índice de batida desse jogador, ou seja, a tentativa de acertar a bola arremessada, tinha começado a cair, embora ele não apresentasse o menor sinal de fraqueza muscular ou de outra anormalidade qualquer. Mesmo assim, o atleta procurou um médico, um segundo, um terceiro, mas nenhum deles encontrou explicação para o que estava acontecendo. O quarto médico, porém, ao examiná-lo sem roupa, notou pequena atrofia e certo tremor muscular e fez o diagnóstico. Ele conhecia as características da esclerose lateral amiotrófica, porque sua mãe havia morrido por causa dessa doença.
Ainda hoje, depois do primeiro sintoma, a peregrinação por quatro ou cinco médicos atrás do diagnóstico costuma durar mais ou menos um ano.
Drauzio – A esclerose lateral amiotrófica é sempre uma doença que acomete os neurônios?
Acary S. Bulle Oliveira – A ELA é uma doença provocada por alteração no primeiro neurônio motor (superior) e no segundo neurônio motor (inferior). Seu principal sintoma é a fraqueza muscular. Outro sintoma, os reflexos vivos, é sinal do comprometimento no primeiro neurônio. Já a atrofia e o tremor muscular são indicativos do comprometimento do segundo neurônio.
CAUSAS E PREVALÊNCIA

Drauzio – Qual a causa dessa doença?
Acary S. Bulle Oliveira – Ninguém conhece a causa. Sabe-se, entretanto, que os atletas constituem uma população com maior risco. Parece que a superutilização da musculatura favorece o mecanismo de degeneração da via motora. Essa não é a única causa, porém, pois pessoas que nada têm de atletas também desenvolvem essa doença degenerativa.
Drauzio – Qual é a prevalência da ELA?
Acary S. Bulle Oliveira – ELA é uma doença relativamente rara. São registrados um ou dois casos em cada cem mil pessoas por ano no mundo. Acontece que numa das ilhas Marianas, a ilha de Guan situada no Pacífico Oeste, abaixo das Filipinas e a leste do Japão, o número de casos é cem vezes maior. Isso chamou a atenção dos pesquisadores. Eles descobriram que habitantes dessa região, os chamorros, consumiam muito a fruta de uma palmeira que era rica em glutamato. O curioso é que a toxicidade não estava no fruto: estava numa iguaria feita com morcegos carregados de glutamato, porque se alimentavam com esse fruto.
Os pesquisadores concluíram, então, que tanto os atletas expostos a ações repetitivas, quanto os chamorros comendo, por anos a fio, o prato feito com morcegos, teriam predisposição para o aparecimento da doença.
Drauzio – A esclerose lateral amiotrófica tem herança genética?
Acary S. Bulle Oliveira – Em sua maioria, os casos são esporádicos. Entretanto de 5% a 10% dos pacientes desenvolvem uma forma familiar da doença. Parte deles é portadora da mutação de um gene relacionado com uma enzima inibidora dos radicais livres, isto é, do lixo que as células produzem. O entendimento desse mecanismo é de fundamental importância para encontrar formas terapêuticas de tornar a doença menos grave, retardar sua evolução, ou até reverter o quadro.
Drauzio – A mutação desse gene no pai significa que o filho também terá a doença?
Acary S. Bulle Oliveira – Não. Na grande maioria das vezes, a doença aparece numa única pessoa da família.
EVOLUÇÃO
Drauzio – Como evolui a esclerose lateral amiotrófica?
Acary S. Bulle Oliveira – ELA é uma doença degenerativa irreversível que afeta progressivamente os neurônios envolvidos na motricidade. As primeiras alterações podem acometer o pé, depois a perna, a mão e, nos estágios mais adiantados, há comprometimento dos músculos responsáveis pela deglutição e pela respiração.
Em média, a contar do primeiro sintoma, a sobrevida dos pacientes é de três anos e meio, quatro anos, mas há pessoas que vivem muito mais e outras, muito menos. Portanto, não há como fazer prognósticos. Stephen Hawking, famoso físico inglês, recebeu o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica aos 21 anos. O colega que fez o diagnóstico aconselhou-o a não perder tempo com o “livrinho” que estava escrevendo, porque não lhe restava tempo de vida suficiente para vê-lo publicado. Stephen não só terminou aquele livro e assistiu ao sucesso que fez por muitos anos, como escreveu outros livros, casou-se e teve filhos. Hoje, ele brinca que é ruim ser seu médico, porque eles morrem, enquanto ele continua vivo 44 anos depois de ter recebido o diagnóstico. Infelizmente, são poucos os casos como o dele.

Drauzio
– O que pode ser feito para retardar a evolução da doença?
Acary S. Bulle Oliveira – A doença deixou de ser considerada intratável. Diante da pesquisa com os chamorros mostrando que glutamato em excesso pode provocar a doença, um laboratório conseguiu sintetizar uma substância que inibe a ação tóxica do glutamato sobre os neurônios motores com o propósito de aumentar a sobrevida do paciente. No entanto, essa droga não impede a evolução da doença. Por isso, vários laboratórios estão tentando encontrar outras que potencializem a ação dessa primeira.
Os experimentos com animais mostram que a terapia gênica pode não só retardar como reverter a evolução da ELA. Em humanos, esse objetivo ainda não foi alcançado, mas sabe-se que é potencialmente viável.
TRATAMENTO

Drauzio
– Essa pobreza de recursos não implica a impossibilidade de tratar os doentes?
Acary S. Bulle Oliveira – De jeito nenhum. Durante toda a evolução da doença, há como orientar os pacientes para que usufruam melhor qualidade de vida com independência e autonomia. Eles necessitam de tratamento multidisciplinar sob a supervisão de um médico e acompanhamento fonoaudiológico e fisioterápico ou de um educador físico.
O músculo foi feito para contrair e relaxar, foi feito para o movimento. Mal usado, atrofia por desuso; usado em excesso também se ressente. Como a esclerose lateral amiotrófica é uma doença que se manifesta com frequência nas pessoas submetidas a atividades físicas intensas, por exemplo, os atletas e os trabalhadores braçais, é preciso intervir com cuidado para que mantenham a atividade física sem consumo excessivo da musculatura.
O avançar da doença traz consigo a dificuldade para falar e deglutir líquidos e a própria saliva. O trabalho do fonoaudiólogo é ensinar o doente a utilizar melhor os recursos para a expressão da linguagem e para deglutir de forma adequada, a fim de evitar engasgos e a entrada de alimentos na árvore brônquica. Por outro lado, assegurar que ele consiga alimentar-se convenientemente evita a perda de peso que pode agravar o quadro.

Drauzio
– Em que medida é possível conseguir isso?
Acary S. Bulle Oliveira – É possível conseguir por um tempo razoável mesmo nas situações limitantes. Atualmente, na Escola Paulista de Medicina, existem vários pacientes com esclerose lateral amiotrófica que estão sendo acompanhados desde o início da doença. Alguns apresentam dificuldade respiratória. Num passado recente, os indivíduos com esse sintoma tinham de ser internados num hospital para usar um respirador. Agora, existe um respirador domiciliar chamado CPAP, que permite ao paciente continuar trabalhando pelo menos algumas horas por dia.
A fase final da doença muitas vezes é complicada, porque a pessoa tem dificuldade para falar, deglutir e respirar, mas as outras funções e a parte cognitiva permanecem íntegras.
Alguns indivíduos não conseguem falar, mas conseguem manter comunicação visual e já existem programas de computador acionados pelo olhar. No último congresso internacional em Dublin, na Irlanda, foi apresentado um trabalho de robótica com estimulador elétrico na área cerebral que coletava a informação e acionava um computador ao qual estava  acoplado um braço mecânico, o que permitia não só estabelecer a comunicação como também executar algumas atividades.
REAÇÃO DIANTE DA DOENÇA

Drauzio
Como reage uma pessoa de 40 anos diante do sofrimento de perder progressivamente os movimentos até chegar ao extremo de não conseguir respirar nem deglutir direito, mas que continua com a função intelectual perfeita?
Acary S. Bulle Oliveira – Seu amigo que não conseguiu bater o pênalti, com certeza, é uma pessoa ótima, dócil, alegre, como é a grande maioria dos portadores da doença.  A gente se apaixona por eles, porque têm muito a oferecer. Estão sempre lutando pela vida e procurando alternativas para enfrentar as dificuldades do dia a dia. Isso contagia quem convive com eles e todos acabam se engajando na sua luta, o que torna a relação médico-paciente muito rica.
Outro aspecto interessante é que essas pessoas aparentemente não abandonam as convicções religiosas.
Drauzio – Elas já eram assim antes da doença, ou foi a doença que as fez reagir desse jeito?
Acary S. Bulle Oliveira – Um trabalho publicado recentemente por um grupo alemão, utilizando ressonância magnética funcional, mostrou brilho intenso na área do sentimento dessas pessoas. Parece que isso nada tem a ver com a doença. Parece que elas nasceram assim.
PREGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL

Maria Cândida Espiridião
Recife/PE – A cãibra da esclerose lateral é parecida com a cãibra que as pessoas sentem em determinadas situações?
Acary S. Bulle Oliveira – Em linhas gerais, a cãibra é uma contração muscular provocada pelo estímulo elétrico que passa da medula para o nervo e alcança a musculatura. Pode-se dizer que 95% das pessoas sentem cãibra, ora numa, ora noutra região do corpo, quando fazem atividade física intensa. Cãibra isolada não é sinal de ELA.
A cãibra da esclerose lateral amiotrófica é mais frequente e aparece na panturrilha, no pé, na mão ao mesmo tempo e está associada a outros sintomas da doença.
Lucas Ribeiro da Silva – Guarulhos/SP – Que tipo de exercício físico é mais indicado para os pacientes com ELA?
Acary S. Bulle Oliveira – O mais indicado é o que não cansa o paciente. É o que lhe dá prazer, sem que sinta cansaço ou dor.
Adalberto Ferreira – São Paulo/SP – De que forma os familiares podem ajudar um paciente já em estágio mais avançado da doença?
Acary S. Bulle Oliveira – Quando falamos em esclerose lateral amiotrófica, estamos falando do binômio paciente e cuidador. O cuidador terá de aprender técnicas médicas, psicológicas, de enfermagem, de terapia ocupacional, fonoaudiológicas, além de estar atento à parte jurídica e aos anseios religiosos.
O interessante é que o paciente costuma sofrer menos do que o cuidador. Se os familiares quiserem ajudá-lo, têm de estar por perto, tentando sempre não sofrer demais com a dor do outro. Todos nascemos marcados por uma sentença de morte, mas vivemos sem pensar muito nela. Então, por que passar para o portador de ELA a idéia de que sua sentença vai ser executada no dia seguinte, dali um mês ou três meses depois, se temos surpresas enormes quando fazemos tais prognósticos?