No Brasil,
40% da população carcerária é de presos provisórios, e relatório inédito
das Nações Unidas alerta o País para o excesso de detenções ilegais.
Muitos desses detentos, inocentes, ficam com sequelas irreversíveis
Nathalia Ziemkiewicz – ISTOÉ Independente
Em 2003, o
ajudante de pedreiro Heberson Oliveira foi acusado de entrar na casa de
vizinhos na periferia de Manaus, arrastar uma criança para o quintal e
estuprá-la enquanto os pais dormiam. Heberson dizia que, na noite do
crime, estava em outro bairro da cidade. Ninguém acreditou. A vítima,
uma menina de 9 anos, se viu pressionada a reconhecê-lo como algoz e dar
um desfecho ao escândalo. Embora a descrição do suspeito divergisse das
características físicas de Heberson, ele foi para a cadeia. Lá aguardou
julgamento por quase três anos jurando inocência. A mãe chegou a ser
hospitalizada ao receber a notícia. “Com a vida que a gente levava, não
podia garantir que ele nunca roubaria”, diz Socorro Lima. “Mas não seria
capaz de uma coisa dessas.” Dona de casa e pensionista, ela pegou
empréstimos para bancar advogados. Atrás das grades, o rapaz sem
antecedentes criminais assistiu a rebeliões, entrou em depressão, foi
abusado sexualmente e contraiu o vírus HIV.
E nada de
audiência ou sentença. Até que a defensora pública Ilmair Siqueira
assumiu o caso: ela alertou o promotor de que não havia provas ou
testemunhas para acusar seu cliente. O juiz pediu desculpas pela
injustiça e concedeu a liberdade. Mas Heberson nunca mais seria um homem
livre. Tentou um emprego numa loja de materiais de construção e foi
vítima do preconceito entre os próprios colegas, que temiam até beber
água da mesma torneira. Sete anos após sua absolvição, o rapaz permanece
desempregado. Hoje, perambula pelas ruas catando latinhas e consumindo
pedras de oxi. “Eu morri quando me fizeram pagar pelo que não fiz”, diz
Heberson aos 32 anos, explicando por que não toma o coquetel contra a
Aids. “Todos os dias tento esquecer o que vivi”, diz ele, vítima de um
sistema judiciário que também está doente e, segundo as Nações Unidas,
desperta graves preocupações.
No final de
março, peritos do Conselho de Direitos Humanos da ONU visitaram
penitenciárias de cinco capitais brasileiras. O País chama a atenção
pelo acelerado crescimento de sua população carcerária, que alcançou a
quarta posição no ranking mundial. Há 550 mil detentos no Brasil, número
cinco vezes maior que em 1990. O grupo investigou detenções arbitrárias
– ilegais ou desnecessárias. No documento preliminar entregue às
autoridades, os peritos destacaram o uso excessivo de privação de
liberdade e a falta de assistência jurídica gratuita. Ao contrário do
que se preconiza mundo afora, a regra tem sido punir antes para
averiguar depois. Cerca de 40% do total são presos provisórios, que
ainda não receberam sentença.
A prisão
temporária não poderia ultrapassar 120 dias, prazo máximo para que o
processo seja julgado. Mas a morosidade da Justiça é o grande entrave. O
acusado de um furto, por exemplo, leva em média seis meses para ser
ouvido pela primeira vez por um juiz. Nesse período, ele convive com
assassinos e traficantes em ambientes degradantes. “É uma tortura
institucionalizada: falta água para banho e descarga, acesso a
medicamentos e itens de higiene, os presos fazem rodízio porque nem no
chão há espaço para dormir”, afirma Bruno Shimizu, defensor público do
Estado de São Paulo. Não à toa, a taxa de reincidência gira em torno de
80%. “Depois da barbárie na cadeia, o preso sai e desconta sua raiva na
sociedade”, diz Marcos Fuchs, diretor da ONG Conectas. Apesar das taxas
recordes de aprisionamento, os indicadores de criminalidade crescem.
Entre 1990 e 2010, houve um aumento de 63% nos homicídios, segundo o
Ministério da Saúde.
Nos delitos
menores, a legislação recomenda medidas alternativas como o
monitoramento eletrônico, prisão domiciliar, prestação de serviços à
comunidade, etc. Elas desafogariam um sistema com déficit de 240 mil
vagas. Os visitantes da ONU também perceberam que o princípio de
proporcionalidade muitas vezes é ignorado. Em outras palavras, o ladrão
de uma caixa de leite não pode ter sua liberdade condicionada a uma
fiança de três salários mínimos. Ou continuará preso, sem condições de
pagá-la. Além disso, não há defensores públicos para a demanda. Os
Estados de Santa Catarina e Paraná, por exemplo, não têm nenhum. Há
cidades com um defensor para 800 casos, o que torna impossível uma boa
defesa. “Em um país onde a maioria dos presos é pobre, é extremamente
preocupante que não haja assistência jurídica suficiente disponível para
aqueles que precisam”, disse o perito Roberto Garretón. Procurado, o
Ministério da Justiça não quis se pronunciar sobre o documento da ONU,
que será apresentado oficialmente com recomendações ao governo
brasileiro em 2014.
As vítimas dos
erros da Justiça fazem fila por indenizações. Quem vence a disputa
contra o Estado ainda corre o risco de morrer sem o dinheiro, na longa
fila de pagamentos da dívida pública. Desde 2008, Daniele de Toledo
Prado tenta receber uma pensão de três salários mínimos. Ela ficou 37
dias presa, acusada de matar a filha colocando cocaína na mamadeira.
Daniele foi agredida por 12 colegas de cela que a reconheceram em uma
reportagem na tevê. Entre murros e chutes, sob os gritos de “monstro”,
ela desmaiou e só recebeu atendimento no dia seguinte. Perdeu visão e
audição do lado direito. Aos 28 anos, Daniele conta que não consegue
emprego por causa das deficiências, fruto do episódio.
O pó branco
era, na verdade, remédio para controlar as crises convulsivas do bebê.
Hoje ela está desempregada e vive com o filho de 10 anos na casa de
parentes. “Para me prender sem provas foi rápido. Agora enfrento a
lentidão para receber algo que sequer vai reparar a minha dor”, diz. Ao
contrário dela, Heberson não pediu indenização porque perdeu a esperança
na Justiça. Preso ao passado, ele acredita que tudo “foi uma provação
de Deus” para testar sua fé. Deitado nas calçadas de Manaus, ele teme
que as memórias o enlouqueçam de fato. “Toda vez que me tratam feito
bicho, penso que não sabem o que já passei…”.
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