Abate religioso de animais na legislação brasileira
No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou plenamente constitucional a Lei estadual n. 12.131/2004, especificamente seu art. 2º, que isenta as religiões afro-brasileiras da observância de certos procedimentos preparatórios do abate de animais, nestes termos:
Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2.° da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao “Código Estadual de Proteção aos Animais” o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática.[1]
Um olhar panorâmico sobre a legislação brasileira revela que a lei gaúcha nada tem de inconstitucional, ilegal, tampouco configura novidade, merecendo realce a Instrução Normativa n. 3, de 17 de janeiro de 2000, do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, que em seu art. 11 disciplina o abate religioso de animais.
Trata-se de tendência observada também em outros países, haja vista a existência de normas análogas na Comunidade Européia (Directiva n. 93/119, de 22/12/1993, art. 2o), em Portugal (Lei da Liberdade Religiosa, Dec. n. 66/VIII, de 6/6/2001, art. 26) e Espanha (Lei n. 25/1992, de 10.11.1992, art. 14 e Lei n. 25/1992, de 10.11.1992, art. 14), apenas para citarmos estes exemplos.
Também a Suprema Corte dos Estados Unidos registra o emblemático caso Church of The Lukumi Babalu Aye.[2]
A Church of the Lukumi Babalu Aye, pertencente à confissão religiosa denominada Santería (levada para os Estados Unidos no século XIX, por negros cubanos), atribui ao sacrifício de animais um lugar destacado na sua liturgia, fato este que levou o município de Hialeah (Flórida) a promover uma interpelação judicial.
Invocando a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, a Suprema Corte entendeu que os funcionários públicos deveriam ater-se aos princípios maiores da Constituição, entre os quais a tolerância religiosa. Lembrou ainda que as mesmas normas municipais conviviam com a matança de animais praticada pelos judeus, sem que tais matanças fossem condenadas, de modo que a hostilidade em relação à Church of the Lukumi configurava uma indisfarçável discriminação religiosa.
Salvo engano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande enfrentou a mesma controvérsia da Suprema Corte estadunidense: de um lado o princípio constitucional da liberdade de culto e, de outro, o falacioso e preconceituoso argumento de que o abate religioso importaria tratamento cruel.
Como se sabe, no Brasil, em qualquer restaurante especializado em “frutos do mar” os clientes elegem a dedo as lagostas ainda vivas, após o que elas são solenemente lançadas em água fervente. Ostras são devoradas vivas, regadas a bons vinhos. Nas avícolas, qualquer pessoa pode adquirir galinhas, patos ou coelhos vivos, sem a obrigação legal de conduzi-los ao matadouro, o que permite a conclusão de que a carnificina ocorre no aconchego do lar. Sem esquecermos dos peixes de qualquer peso, abatidos sem qualquer resquício de crueldade, isto é, abandonados fora d’água e entregues à prolongada sufocação.
Realce deve ser dado também à duvidosa motivação ambiental dos críticos do abate religioso que não abrem mão do uso de pele de animais para protegerem seus pés ou mesmo suas mãos, ostentando lustrosos sapatos, botas, cintos, carteiras e luvas de couro. Sem olvidarmos das valises ou bolsas de couro exibidas em vitrines dos centros comerciais e vendidas a peso de ouro. Seriam estas igualmente criticadas, censuradas? Mereceriam a mesma preocupação e zelo dos detratores do abate religioso?
Diferentemente da ausência de significado do abate animal em circunstância secular, civil, para não dizer comercial, ensinam Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker que “O sacrifício é um elemento central no culto de muitas religiões. Um sacrifício, em geral algo que as pessoas consideram valioso, é oferecido aos deuses. Pode ser constituído de frutas, primícias das colheitas, um filhote de animal;”.[3]
Do ponto de vista da Bíblia, já o terceiro livro do Pentateuco, Levítico, faz inúmeras alusões ao sacrifício de animais, merecendo destaque os versículos 1, 2 e 5, do capítulo 1:
1. “Chamou o Senhor a Moisés e, da tenda da congregação, lhe disse:”
2. “Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando algum de vós apresentar oferta ao Senhor, trareis as vossas ofertas de gado ou de ovelhas.”
5. “Depois degolará o novilho perante o Senhor, e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue, e o aspargirão em redor sobre o altar que está diante da entrada da congregação”.
Judeus e muçulmanos possuem rituais de abate religioso de animais.
Na kaparot, ritual judaico realizado nas vésperas do Yom Kipur, “Dia do Perdão”, um homem apanha um galo ou, sendo mulher, uma galinha, e passam o animal nove vezes sobre a cabeça recitando a prece “bracha bnei adam – Seja esta minha expiação”. Em seguida entregam o animal ao shochet (sacerdote responsável pelo abate); o valor correspondente à ave é dado aos pobres.
Já o muçulmanos celebram a Eid al-Adha, Festa do Sacrifício, cerimônia islâmica realizada no 10º dia do último mês do calendário islâmico, no fim da hajj (peregrinação à Meca): são sacrificados um carneiro, camelo, cabra ou boi, em memória da submissão do Profeta Ibrahim (Abraão) à Alá.
Ademais, o vocábulo hóstia significa “vítima oferecida em sacrifício à divindade”[4], lembrando que para os cristãos Jesus é o Cordeiro de Deus, cuja carne, na liturgia da missa, é simbolicamente compartilhada entre os fiéis, enquanto o sangue, representado pelo vinho, é ingerido publicamente pelo Padre.
Merece destaque que o art. 5º da Constituição Federal assegura ampla liberdade de crença, de culto, de liturgia e de organização religiosa; o mesmo artigo proíbe a privação de direitos fundada em crença religiosa, entre outras modalidades de discriminação injusta.
Bem por isso o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo anota que na hipótese de conflito entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, merecerá proteção a prática cultural – no caso, sacrifício de animais domésticos – que implique “identificação de valores de uma região ou população”.[5]
À luz do sistema jurídico brasileiro inexiste, portanto, qualquer objeção ao abate religioso, de sorte que especulações neste sentido devem ser creditadas à desinformação, à ignorância, à improvisação ou em muitos casos a uma indisfarçável discriminação religiosa.
Dr. Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre em Direito Processual Penal e Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP
No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou plenamente constitucional a Lei estadual n. 12.131/2004, especificamente seu art. 2º, que isenta as religiões afro-brasileiras da observância de certos procedimentos preparatórios do abate de animais, nestes termos:
Não é inconstitucional a Lei 12.131/04-RS, que introduziu parágrafo único ao art. 2.° da Lei 11.915/03-RS, explicitando que não infringe ao “Código Estadual de Proteção aos Animais” o sacrifício ritual em cultos e liturgias das religiões de matriz africana, desde que sem excessos ou crueldade. Na verdade, não há norma que proíba a morte de animais, e, de toda sorte, no caso a liberdade de culto permitiria a prática.[1]
Um olhar panorâmico sobre a legislação brasileira revela que a lei gaúcha nada tem de inconstitucional, ilegal, tampouco configura novidade, merecendo realce a Instrução Normativa n. 3, de 17 de janeiro de 2000, do Ministério da Agricultura e do Abastecimento, que em seu art. 11 disciplina o abate religioso de animais.
Trata-se de tendência observada também em outros países, haja vista a existência de normas análogas na Comunidade Européia (Directiva n. 93/119, de 22/12/1993, art. 2o), em Portugal (Lei da Liberdade Religiosa, Dec. n. 66/VIII, de 6/6/2001, art. 26) e Espanha (Lei n. 25/1992, de 10.11.1992, art. 14 e Lei n. 25/1992, de 10.11.1992, art. 14), apenas para citarmos estes exemplos.
Também a Suprema Corte dos Estados Unidos registra o emblemático caso Church of The Lukumi Babalu Aye.[2]
A Church of the Lukumi Babalu Aye, pertencente à confissão religiosa denominada Santería (levada para os Estados Unidos no século XIX, por negros cubanos), atribui ao sacrifício de animais um lugar destacado na sua liturgia, fato este que levou o município de Hialeah (Flórida) a promover uma interpelação judicial.
Invocando a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, a Suprema Corte entendeu que os funcionários públicos deveriam ater-se aos princípios maiores da Constituição, entre os quais a tolerância religiosa. Lembrou ainda que as mesmas normas municipais conviviam com a matança de animais praticada pelos judeus, sem que tais matanças fossem condenadas, de modo que a hostilidade em relação à Church of the Lukumi configurava uma indisfarçável discriminação religiosa.
Salvo engano, o Tribunal de Justiça do Rio Grande enfrentou a mesma controvérsia da Suprema Corte estadunidense: de um lado o princípio constitucional da liberdade de culto e, de outro, o falacioso e preconceituoso argumento de que o abate religioso importaria tratamento cruel.
Como se sabe, no Brasil, em qualquer restaurante especializado em “frutos do mar” os clientes elegem a dedo as lagostas ainda vivas, após o que elas são solenemente lançadas em água fervente. Ostras são devoradas vivas, regadas a bons vinhos. Nas avícolas, qualquer pessoa pode adquirir galinhas, patos ou coelhos vivos, sem a obrigação legal de conduzi-los ao matadouro, o que permite a conclusão de que a carnificina ocorre no aconchego do lar. Sem esquecermos dos peixes de qualquer peso, abatidos sem qualquer resquício de crueldade, isto é, abandonados fora d’água e entregues à prolongada sufocação.
Realce deve ser dado também à duvidosa motivação ambiental dos críticos do abate religioso que não abrem mão do uso de pele de animais para protegerem seus pés ou mesmo suas mãos, ostentando lustrosos sapatos, botas, cintos, carteiras e luvas de couro. Sem olvidarmos das valises ou bolsas de couro exibidas em vitrines dos centros comerciais e vendidas a peso de ouro. Seriam estas igualmente criticadas, censuradas? Mereceriam a mesma preocupação e zelo dos detratores do abate religioso?
Diferentemente da ausência de significado do abate animal em circunstância secular, civil, para não dizer comercial, ensinam Jostein Gaarder, Victor Hellern e Henry Notaker que “O sacrifício é um elemento central no culto de muitas religiões. Um sacrifício, em geral algo que as pessoas consideram valioso, é oferecido aos deuses. Pode ser constituído de frutas, primícias das colheitas, um filhote de animal;”.[3]
Do ponto de vista da Bíblia, já o terceiro livro do Pentateuco, Levítico, faz inúmeras alusões ao sacrifício de animais, merecendo destaque os versículos 1, 2 e 5, do capítulo 1:
1. “Chamou o Senhor a Moisés e, da tenda da congregação, lhe disse:”
2. “Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando algum de vós apresentar oferta ao Senhor, trareis as vossas ofertas de gado ou de ovelhas.”
5. “Depois degolará o novilho perante o Senhor, e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue, e o aspargirão em redor sobre o altar que está diante da entrada da congregação”.
Judeus e muçulmanos possuem rituais de abate religioso de animais.
Na kaparot, ritual judaico realizado nas vésperas do Yom Kipur, “Dia do Perdão”, um homem apanha um galo ou, sendo mulher, uma galinha, e passam o animal nove vezes sobre a cabeça recitando a prece “bracha bnei adam – Seja esta minha expiação”. Em seguida entregam o animal ao shochet (sacerdote responsável pelo abate); o valor correspondente à ave é dado aos pobres.
Já o muçulmanos celebram a Eid al-Adha, Festa do Sacrifício, cerimônia islâmica realizada no 10º dia do último mês do calendário islâmico, no fim da hajj (peregrinação à Meca): são sacrificados um carneiro, camelo, cabra ou boi, em memória da submissão do Profeta Ibrahim (Abraão) à Alá.
Ademais, o vocábulo hóstia significa “vítima oferecida em sacrifício à divindade”[4], lembrando que para os cristãos Jesus é o Cordeiro de Deus, cuja carne, na liturgia da missa, é simbolicamente compartilhada entre os fiéis, enquanto o sangue, representado pelo vinho, é ingerido publicamente pelo Padre.
Merece destaque que o art. 5º da Constituição Federal assegura ampla liberdade de crença, de culto, de liturgia e de organização religiosa; o mesmo artigo proíbe a privação de direitos fundada em crença religiosa, entre outras modalidades de discriminação injusta.
Bem por isso o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo anota que na hipótese de conflito entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, merecerá proteção a prática cultural – no caso, sacrifício de animais domésticos – que implique “identificação de valores de uma região ou população”.[5]
À luz do sistema jurídico brasileiro inexiste, portanto, qualquer objeção ao abate religioso, de sorte que especulações neste sentido devem ser creditadas à desinformação, à ignorância, à improvisação ou em muitos casos a uma indisfarçável discriminação religiosa.
Dr. Hédio Silva Jr., Advogado, Mestre em Direito Processual Penal e Doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP
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