Candomblé,
umbanda, tambor de mina, batuque, nação, quimbanda, xambá, omolocô,
pajelança, jurema: as religiões de matriz africana e indígena compõem,
no Brasil, um cenário amplo e plural. Para melhor compreender tal
cenário e conhecer a realidade das comunidades tradicionais de terreiro,
o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS e aOrganização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, em parceria com aSecretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR e a Fundação Cultural Palmares – FCP, desenvolveram o projeto Mapeando o Axé.
A pesquisa socioeconômica e cultural das comunidades tradicionais de
terreiro foi realizada nas capitais dos Estados de Minas Gerais,
Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul.
Segundo Eloi Ferreira de Araujo, presidente daFundação Cultural Palmares,
o governo brasileiro tem uma longa dívida com as comunidades
remanescentes de terreiros. “As comunidades são a essência da matriz
cultural africana e afro-brasileira. O mapeamento busca conhecer a
realidade dessas comunidades, criando as condições necessárias para que
as políticas públicas cheguem até elas. Além disso, garante sua
preservação cultural e proteção como patrimônio imaterial”, explica.
Realizada entre maio e agosto de 2010 pela Associação Filmes de Quintal,
instituição habilitada por meio de edital público, a pesquisa mapeou
4.045 terreiros em regiões metropolitanas, sendo 1.089 deles em Belém;
353 em Belo Horizonte;
1.342 em Porto Alegre; e 1.261 em Recife. Entre os objetivos, estavam
descobrir quem são, onde estão localizados, quais as principais
atividades comunitárias, qual a situação fundiária e demais aspectos
socio-culturais e demográficos.
De acordo com Marcelo Vilarino, antropólogo da Associação Filmes de Quintal e
um dos coordenadores da pesquisa, a valorização e o reconhecimento da
importância histórica das comunidades negras no Brasil puderam ser
observadas nas falas e nas ações das lideranças das casas religiosas.
“Damos destaque para o movimento pelo fim da intolerância religiosa e
pela aplicabilidade da lei que garante a liberdade de culto no país”,
conta.
Vilarino
enfatiza que, em regiões periféricas dos grandes centros urbanos, em
geral não alcançadas pelos serviços públicos, as comunidades dos
terreiros e suas lideranças exercem diversos papéis importantes, tanto
como conselheiros espirituais quanto no desenvolvimento de ações de
apoio à saúde, cultura e educação e de combate à violência contra a
mulher. “Os terreiros são espaços privilegiados de solidariedade. As
pessoas são respeitadas pela sua própria existência e por poderem ser
instrumentos da ação das forças divinas na terra, no ato da incorporação
espiritual. Nessas comunidades, tudo é partilhado e ninguém passa fome.
O pouco que se tem é distribuído ou reaproveitado, sendo o desperdício
inexistente, diante do processo dinâmico de distribuição do excedente”,
conta o antropólogo.
Segundo Marcos Dal Fabbro, diretor de Promoção à Alimentação Adequada da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS,
o levantamento buscou difundir a importância da localização das
comunidades no espaço geográfico das cidades, fazer sua contabilização e
realizar um diagnóstico sociocultural focado em segurança alimentar e
nutricional. “As comissões de acompanhamento da pesquisa foram formadas
por lideranças das comunidades tradicionais de terreiros, representantes
de órgãos governamentais locais – que possuem interlocução com os
atores sociais em foco –, e de movimentos negros organizados, além de
outras instituições e de pessoas como yalorixás, babalorixás, mametus,
tatetus, zeladores, mães e pais de santo”.
A
partir das informações coletadas, foi construído um banco de dados
sobre as comunidades tradicionais de terreiro, com o objetivo de servir
como referência para a formulação de políticas públicas, em especial as
de promoção da segurança alimentar e nutricional. “Os terreiros podem
ser vistos como facilitadores de ações de assistência social, saúde e
segurança alimentar e espaços de promoção social e inclusão produtiva. A
sintonia com as necessidades locais faz com que sejam potenciais
espaços para a identificação de demandas para formações e capacitações
voltadas à comunidade”, conta Dal Fabro. Para ele, a sustentabilidade
cultural e a segurança alimentar estão relacionadas à promoção da
autonomia dos terreiros quanto à produção de alimentos adequados e
saudáveis, por meio de atividades como hortas comunitárias, quintais
produtivos e agricultura urbana. “Os terreiros também são locais de
saberes tradicionais femininos, que junto à diversidade étnica e
religiosa, precisam ser respeitados e trabalhados do ponto de vista de
políticas culturais e educacionais”, enfatiza o diretor de Promoção à Alimentação Adequada da Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional do MDS.
Preservação da matriz cultural africana
Sobre
a contribuição do mapeamento das comunidades tradicionais de terreiro
para a preservação do patrimônio cultural brasileiro, conversamos com o
professor daEscola de Comunicação – ECO da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
Muniz Sodré. Segundo ele, o mapeamento é importante para avaliar a
força, a presença geográfica e o lugar social que os terreiros ocupam
nas cidades brasileiras.
De
acordo com Sodré, as comunidades de terreiro não são movimentos
exclusivamente religiosos, mas se apresentam historicamente como
organizações políticas capazes de preservar a identidade cultural de
matriz africana: “a identificação com a cultura africana sempre esteve
ligada aos terreiros”, resume.
O
pesquisador também ressaltou a importância do mapeamento dos terreiros
para a proteção jurídica territorial, possibilitando a regulamentação
fundiária das comunidades tradicionais. Da mesma forma, a legitimação
das comunidades de terreiro junto ao Estado é também importante para
proteger sua cultura do assédio de outras religiões de cunho
fundamentalista e discriminatório. Sodré ressaltou ainda a modernidade
das religiões de matriz africana em relação ao respeito que prestam às
demais religiões, um “respeito fortalecedor da convivência religiosa”.
Para ele, é sadio para a democracia e para a cultura brasileira que os
terreiros estejam sob a proteção do Estado.
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