Militana, heroína de crônicas de tempos idos.
a cantriz Cachimbeira
Mae maria José ... Militana nome de batismo cristão, guardiã de histórias e canções de mais de 700 anos...
Reconhecida como a maior romanceira do Brasil, a cantora, que faleceu em 2010 e completaria 96 anos nesta sexta-feira, conservou em sua memória parte da história do Brasil e da Península Ibérica
SÍTIO OITEIRO FICA NA COMUNIDADE DE SANTO ANTÔNIO DOS BARREIROS, EM SÃO GONÇALO DO AMARANTE (RN); ERA NAQUELA CASA MODESTA QUE A ROMANCEIRA VIVIA COM A FILHA BENEDITA, ONDE SENTAVA A UMA POLTRONA, TRAJANDO BLUSA E SAIA QUE LHE COBRIAM BRAÇOS E PERNAS, E USAVA SEU TRADICIONAL LENÇO AMARRADO À CABEÇA, À MODA AFRICANA.
Dona Militana é a homenageada do Doodle do Google desta sexta-feira (19). Militana Salustiano do Nascimento, mais conhecida como Dona Militana, foi uma cantora e contadora de histórias potiguar que completaria 96 anos hoje. Nascida em São Gonçalo do Amarante, a artista ficou conhecida por cantar músicas com relatos de romances históricos da época medieval, que havia aprendido com seu pai. Por esse talento, é considerada até hoje a maior romanceira do país.
https://www.youtube.com/watch?v=j_cOWiyIshI
A ilustração do Doodle foi criada pela designer pernambucana Bel Andrade de Lima e mostra um desenho de Dona Militana em frente a uma casa simples, rodeada por árvores e flores. A figura está sendo exibida na página inicial do Google no Brasil, nas versões para computador e para celular.
Militana Salustiano do Nascimento nasceu no dia 19 de março de 1925 em
São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte. Ainda criança,
trabalhava na lavoura e na tecelagem de cestos com seu pai, que cantava músicas que contavam histórias de uma era medieval, sobre guerreiros, reis
e
rainhas, algumas delas com mais de 700 anos — canções que nunca
saíram da memória da artista.
O talento de Dona Militana ficou desconhecido por muitos anos, até que,na década de 1990, foi descoberto
pelo folclorista Deífilo Gurgel. No ano de 2000, a cantora gravou o CD triplo "Cantares", uma coleção de 54 canções com romances, letras e melodias históricas. Após esse lançamento, a artista ganhou projeção nacional. Durante sua vida, Dona Militana também cantou modinhas, coco, toadas de boi, aboios e fandangos.
Em 2005, Dona Militana foi agraciada com a Ordem do Mérito Cultural, condecoração concedida pelo
Ministério da Cultura a pessoas,instituições e grupos artísticos em reconhecimento por suas contribuições
para a cultura brasileira. Dona Militana morreu no dia 19 de junho de
2010, após complicações de um mal súbito.
“Tá com medo? Tá com medo? Pois eu tô véia, maga, acabada, mas não tenho medo
não”, diz Dona Militana na abertura do documentário sobre sua vida e obra, de Hermes
Leal (assista abaixo), para logo em seguida explicar que está brincando, e avisar, meio a
sério, meio de brincadeira: “Mas comigo vocês não brinque não”. Conhecida como a
maior romanceira do Brasil, Militana Salustino do Nascimento, que faleceu em 2010 e completaria
96 anos nesta sexta-feira, conservou em sua memória canções e histórias ibéricas de mais de 700
anos de idade, que herdou do pai, Atanásio Salustino do
Nascimento, o Mestre do Fandango.
Grafite de Dona Militana no Insituto Juvino Barreto feito pelo artista Lucas MDS.
“Eu canto desde pequena”
É necessário, portanto, aprofundarmos a compreensão da poética da oralidade como
agente responsável pela resistência, continuidade e ao mesmo tempo transformação
dessa identidade. Enfim, é nesse sentido que situamos o re-conhecimento de D.
Militana dentro do seu grupo social, como a portadora de uma memória
significativa à identidade cultural do lugar. Percebemos esse reconhecimento por
meio da própria Militana quando diz:
Vem das coisas que eu ouvia menina, criança, e continuei ouvindo. Eu canto desde
pequena. Cantava pras filhas, canto pros netos, pro povo. Assim o povo me ouviu e
pediu que eu cantasse mais. Lembro de tudo. De tanta coisa desse mundo de Deus.*
*Entrevista concedida ao Diário de Natal em 25 de Setembro de 2006.
“Já fui gente hoje sou um bregueço”
Há dois anos calava-se a nossa cantriz cachimbeira. A Maior Cantadeira de Romances do Brasil,
Militana Salustino do Nascimento, nasceu no povoado de Barreiros (São Gonçalo do Amarante )
em 19 de Março de 1925 e faleceu no dia 19 de Junho de 2010, no mesmo município. Dona
de uma memória prodigiosa foi a principal informante de Romances colhidos por Deífilo Gurgel. Uma mulher simples que trabalhava na roça cantou para Deífilo os romances dos valentões
nordestinos “Cabeleira”, “Zé do Vale” entre outros. Ela foi junto com Fabião das Queimadas
e Chico Antônio os maiores guardiães de uma memoria que não deixou herdeiros.
Conhecedora de dezenas de romances ibéricos e brasileiros, Da Militana ou Maria do Outeiro
guardou na memória o que ouvia de seu pai, Atanásio Salustino do Nascimento, que cantou para
Deífilo o belo Romance da Nau Catarineta.
http://substantivoplural.com.br/dona-militana-heroina-de-cronicas/
Na companhia de Benedita
A chegada a sua então morada não era fácil.
Precisava sair do asfalto e enveredar por ladeiras íngremes, até alcançar a casa de
Benedita, uma de suas filhas.
É uma casa modesta, com um muro baixo e portinhola de madeira.
Passada a entrada, chega-se a uma pequena varanda cerrada por um portão de ferro.
Sentada a uma poltrona, encontrava-se a romanceira, trajando blusa e saia que lhe
cobriam braços e pernas, e seu tradicional lenço amarrado à cabeça, à moda africana.
Em uma de nossas conversas ela explica por que abandonou o sítio Oiteiro, onde
mantinha residência fixa:
“Me vi lá sozinha, eu disse vou pr’onde tá Benedita… aí vim embora pra cá…”.
Embora não fosse sua propriedade, muitas das atenções da casa eram voltadas para
Dona Militana.
Atenta aos atos e a saúde, Benedita sempre a acompanhava, censurando,
ministrando medicamentos nas horas devidas e, muitas vezes, repreendendo o
cachimbo e a cantoria.
Além disso, netos e bisnetos estavam sempre por perto quando faltava cachimbo,
lenço ou fósforos.
Sua postura era de uma típica matriarca, quando recebia visitas.
Afora a varanda, onde recebia visitas com vínculos menos estreitos, havia ainda a
sala de visitas e o quarto, local da bancada – forma como se referia à mesa que
servia de oratório.
Era comum que, ao longo da conversa e numa atmosfera de maior confiança, ela
convidasse o visitante a conhecer a bancada.
Ali se encontravam expostos os santos a quem devotava fé.
O quarto é ambiente sagrado
Como a maioria dos indivíduos do interior do nordeste brasileiro, a fé foi
elemento fundamental na formação de Dona Militana.
Exerceu ofício de rezadeira, para além da atividade agrícola que a acompanhou até a
idade que o corpo permitiu.
Percebemos que a própria divisão do espaço da casa aponta a sacralização do lugar.
Por ser o espaço mais íntimo, é no quarto que Dona Militana punha a sua bancada de
oração.
O visitante comum, ou quem porventura a procurasse para curar ou rezar, só
entrava se conquistasse a confiança.
Ao intruso, Dona Militana reservava ira e revolta:
“[…] vocês conhece a sogra de Mané Bonitinho… mora pra acolá… aí ela chegou,
quando ela entrou, chegou na banca: “ah! a senhora é catimbozeira… […] a banca da
senhora, cada um tem”… peguei ela no braço e disse: sai!… quando chegou na
porta eu empurrei ela, e ela caiu lá fora. Aí ela: “a senhora quer me botar”… eu
disse é pra senhora aprender a respeitar a casa dos outros, num pode chegar
aqui me chamando de catimbozeira”.
A bancada de Dona Militana representava um pouco como a romanceira via a si mesma.
De modo que sua ira com a estranha revela em verdade dois motivos:
Primeiro, a invasão da intimidade, do lugar do eu.
E, também, a interpretação errônea de sua identidade, ao trata-la como catimbozeira, cuja
significação está associada à feitiçaria ou bruxaria, ao ofício de rezadeira.
Todavia aquela ainda não era sua casa
AO REDOR DA PROPRIEDADE COMPRADA PELO AVÔ DE DONA
MILITANA
SURGIU UMA COMUNIDADE SÓ DE PARENTES DO PRÓPRIO
SEU ATANÁSIO,
ANTES DOS FILHOS, NETOS E BISNETOS DA ROMANCEIRA.
Parentela no entorno do Sítio Oiteiro
A casa onde Dona Militana fixou raízes e a memória foi a casa do Sítio Oiteiro.
Para ele dona Militana inclusive compôs um canto usado como despedida do público,
em suas apresentações:
Lá em Barrero
Aonde eu nasci
Em São Gonçalo
Aonde eu me criei
Eu vou embora
Pra meu sítio Oiteiro
Adeus (…) adeus.
O sítio Oiteiro, conforme nos disse a própria Dona Militana, fora adquirido pelo avô:
“(…) isso aqui foi herança do pai dele [falando do pai e do avô], o pai dele
tinha uma novilha… e uma besta… trocou nessa terra e cinquenta réis de volta”.
Ao redor da propriedade, foi fundada uma comunidade só de parentes, em princípio,
de seu Atanásio. Em seguida, vieram filhos, netos e bisnetos de Dona Militana.
Na vila que circunda o sítio Oiteiro, Dona Militana tinha os domínios da casa
estendidos, pois o entorno ainda era regido pelo signo do parentesco.
Trata-se de um espaço irradiante de saberes.
Antes da notoriedade de sua memória de romanceira, Dona Militana muito pouco
saíra do lugar de origem.
Sua vida e conhecimento do mundo circunscreve-se àquele espaço doméstico,
mas não domesticado, visto que muitas vezes é hostil.
O que exigia certa ‘ciência’ para superá-los.
Existência, portanto, em ambiente familiar.
Seja na lavoura, fabricando cestos de cipó, seja na condição de mulher, cuidando de
idosos e enfermos da comunidade.
“O pessoal mais véio do Oiteiro adoecia, quem tomava conta era eu, até a morte”.
Este é o cenário de sua infância, em que ouvia romances de cordel através de tios e do
pai.
Ela depositou na memória, “ouvindo e decorando, decorando e cantando”,
conforme suas palavras.
Ali era seu lugar e morada, onde construiu a vida e ganhou conhecimento de mundo.
Lá era o lugar da tradição, seu esteio comum, mas figurado como lugar de isolamento,
que a obrigara a abandoná-lo para viver com a filha.
Saliento o fato de Dona Militana situar-se entre dois tempos, que faz do sítio
Oiteiro dois lugares diferentes.
O lugar da dispersão do presente, em que netos e bisnetos rumam a outras paragens,
em busca de novas vidas.
E aquele da juventude, coletivo e familiar, onde, provavelmente, na visão idílica de
Câmara Cascudo:
“[…] depois da ceia faziam roda para conversar, espairecer, dono da casa, filhos
maiores, vaqueiros, amigos, vizinhos. Não havia diálogo, mas uma exposição.
Histórico do dia. Assuntos de gado, desaparecimento de bois, aventuras do campeio,
façanhas de um cachorro, queda num grotão, anedotas rápidas, recordações, gente
antiga, valentes, (…) cangaceiros, cantadores, furtos de moça, desabafo de chefes,
vinganças, crueldades, alegrias, planos para o dia seguinte”.
Dona Militana preservava sua história de vida da ação predadora de pesquisadores.
Guardava a memória e se esforçava para oferecer apenas aventuras atuais.
Além, é claro, do acervo de romances e cantigas que dividia com generosidade.
Tão logo vencíamos sua resistência em falar da infância, ela nos mostrava Maria José
(como a conheciam no Oiteiro), protagonista de episódios dignos de folhetos de
romance, como os que ela canta sem cerimônia.
A fé de uma romanceira
Muitas foram as identidades assumidas por Dona Militana ao longo de sua história.
Há inicialmente a Maria José, nome que a liga ao ambiente familiar do sítio Oiteiro,
com que exerceu papéis de filha, mãe, avó, vizinha e rezadeira.
Por outro lado, existe a Militana, nome de batismo, a romanceira afamada.
MORTA EM JUNHO DE 2010, DONA MILITANA PRESERVAVA SUA
HISTÓRIA DE VIDA DA
AÇÃO PREDADORA DE PESQUISADORES; ANTES DA FAMA, RARAS
FORAM AS SAÍDAS
DO SÍTIO OITEIRO
Com frequência a Maria José doméstica retornava na voz da narradora Militana na função de
personagem de suas narrativas.
Narrativas essas que ela resguardava de quem vinha do mundo exterior, dos letrados,
curiosos por sua vida.
Nessas narrativas ela figura como a heroína de crônicas de tempos idos, atuando
como personagens de contos populares, em aventuras e conflitos dos quais se
desembaraça com astúcia e coragem.
Em princípio, ela não me fitava os olhos.
Punha-se a mirar a rua, olhar levantado em direção ao horizonte, como se esperasse alguém
a qualquer momento, ou mesmo contemplasse a história contada.
Sua postura corporal me lembrava uma sacerdotisa portadora da voz primitiva, para quem
o olhar exterior nada significa.
De certa forma, a recusa em falar da vida pregressa parecia dizer que vivíamos outra época.
Época de isolamento e individualismos, incapazes de compreender os sentidos ocultos de
sua vida e da sua comunidade.
Tanto quanto a invasora da ‘bancada’, que a tomou como feiticeira, nós seríamos estranhos
a penetrar na intimidade do que não compreendíamos.
E, por isso mesmo, a profanaríamos.
Inconscientemente transpira em sua atitude a impossibilidade de a visão de mundo
do cientista fundir-se à visão sob a perspectiva da fé, comum à romanceira.
O vivido e o representado
Nasceu desse convívio uma história fluida, sem grandes intermitências do interlocutor.
O que me permitiu contemplar a pessoa da romanceira militando em seus vários papéis e
identidades, conforme a situação narrada.
Vivi parte dessa vida como se fosse uma personagem de romances mostrados por ela.
Porque, de certa forma, é como fazemos todos para dar sentido a vida, ao nos religarmos
com algo que ultrapassa as limitações do cotidiano e legitima nossos esforços contra
a desordem trágica da labuta diária.
Ao fim desta aventura, que durou aproximadamente dois anos, permaneci com a sensação
de que algo me escapou entre os dedos.
Porque entre o vivido e o representado há um hiato intransponível, que a interpretação,
em seu esforço inútil pela totalidade, é incapaz de atingir.
Isso porque meu objeto maior era a memória.
E esta é feita de fragmentos, repleta de lacunas, contradições e zonas de esquecimento,
que nos lançam em um labirinto inevitável.
De lá só saímos com estilhaços de uma verdade a qual formos capazes de vislumbrar.
http://substantivoplural.com.br/dona-militana-heroina-de-cronicas/
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de-700-anos.html
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