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domingo, 22 de dezembro de 2019

Madame Satã. Total respeito a História que não se apaga...

"Eparey Togun...".

Madame Satã.
Total respeito  a História que não se apaga...

Resiliência de quem morreu pobre, Negro, gay, Religioso de Matriz Matriz Africana, Ousou a ser simplesmente ele. Mandame Satã,  João Francisco dos Santos,
  filho de Oya e Ogun...
*
“Eis a noite encantada, amiga do bandido;
Ela vem como cúmplice, a passo escondido;
Lento se fecha o céu como uma grande alcova,
E o homem impaciente em fera se renova.” Baudelaire...

Trocado quando criança por uma égua, para que a mãe pudesse sustentar os dezessete irmãos que permaneceriam, Madame Satã tornou-se uma figura emblemática e contraditória na luta contra os preconceitos arraigados na formação nacional. Negro, pobre e homossexual distinguiu-se de seus pares, sobretudo, pela coragem e inconformidade. Não foram poucas as vezes que frequentou e passou longos períodos encarcerado, cujos motivos que se repetiam tinham a ver com desacato, quando não atingia a prática da violência física que resultou, inclusive, no assassinato de um policial em 1928. Neste famoso caso teria sido insultado reiteradamente por suas condições, inclusive porque Madame Satã não escondia de ninguém qual a sua preferência sexual.
“Desordeiro. Pederasta passivo. Usa suas sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a prória voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Exprime-se com dificuldade e intercala, em sua conversa, palavras da gíria de seu ambiente. É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele, dados seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Inteiramente nocivo à sociedade.”

É essa a descrição de Madame Satã que consta em registro de 1932, encontrado em um dos 26 processos respondidos por ele durante sua vida.

Aos 7 anos, o menino João Francisco dos Santos, filho dos descendentes de escravos, Dona Firmina dos Santos e Seu Manoel Francisco dos Santos, foi trocado por uma égua, para que a mãe, recém-viúva, tivesse como alimentar seus outros 17 irmãos. Naquele tempo, quase duas décadas após a Lei da Abolição, a promessa de estudo que seu comprador fez à sua família não vingou e, então, o menino João foi feito de escravo na fazenda de seu “dono”.

Fugiu para o Rio de Janeiro com uma senhora que também lhe prometera vida mais mansa e digna de uma criança, mas chegando na então capital do Brasil, viu-se novamente escravizado, obrigado a trabalhar como faxineiro, cozinheiro, carregador e tudo o mais que Dona Felicidade lhe ordenasse.

Fugiu de novo. Aos 13 anos, João aprendeu a conquistar sua liberdade na marra. Criou-se na Lapa, quando o bairro vivia seus tempos áureos de boemia e Copacabana era apenas um sonho distante de uma tímida elite que começava a construir casas naquelas orla. Tentou ser vendedor ambulante, garçom, dormiu em caixas de feira e sonhou em ser artista. Eventualmete, caiu na malandragem, treinado por um dos maiores nomes daquela época, Sete-Coroas.

Destacava-se também por outras práticas. Valente, feroz e temido na Lapa, onde passou a residir ainda jovem levando seguramente, para os parâmetros da época, uma vida de malandro, entre michês, bandidos, sambistas e prostitutas, ficou conhecido como dos mais habilidosos capoeiristas de todos os tempos, jogo que utilizava para se proteger e erguer assim sua fama. O que salta aos olhos na trajetória de Madame Satã, porém, cujo nome de batismo, João Francisco dos Santos, foi apagado diante da imagem impressionante de sua personagem, é a desconstrução de paradigmas e a união de paradoxos. Apresentando-se em cabarés decadentes, contra tudo e contra todos, teve, no peito e na raça, o mérito de se exibir travestido com roupas femininas e entoando canções lânguidas e românticas, isto num universo predominantemente machista que se fazia obedecer pela lógica da violência.

Preto e pobre, aos 23 anos João era conhecido como “Caranguejo” por seu infalível soco de esquerda e por frequentar a Praia das Virtudes, onde ia nadar e conseguir o condicionamento físico que lhe permitia fugir da perseguição incansável da polícia.

João habitou o Rio numa época pré-Stonewall, pré-HIV, antes de o Brasil desenvolver seu movimento gay e, posteriormente, LGBT. Foi chamado de “boneca”, “bicha” e  “travesti”, muitas das alcunhas que usam para nos ofender até hoje e que, lá atrás, na década de 1920, Satã já havia criado a coragem para se apropriar dos termos e impo-los com orgulho, defendendo tanto a si mesmo quanto a quem quer que precisasse.

Como narra Rogério Durst na biografia “Madame Satã: Com o diabo no corpo” ( Editora Brasiliense, 1985): “[João] cuidava para que as putas, as bichas e os moleques da Lapa não sofressem perseguição. Pouca coisa acontecia na região sem seu conhecimento ou sua permissão”.

Foi no carnaval carioca de 1942, após mais uma saída da cadeia, que Madame Satã desfilou a fantasia com a qual ficaria nacionalmente e para a posteridade reconhecido. A partir daí, passou a vencer concursos que privilegiavam a temática homossexual frequentemente. Dentre os episódios mais controversos de sua existência consta a lendária briga que resultou na morte do compositor Geraldo Pereira, após este receber um soco desferido por Madame na barriga e tombar no chão, indo de encontro ao asfalto. Em 1971 concedeu uma polêmica entrevista para o semanário “O Pasquim”, em período de chumbo da ditadura militar, e ali começou a se cristalizar o mito em torno de Madame Satã, entre a arte e o submundo, dançarino e marginal. Definia-se, ele mesmo, como “Filho de Iansã e Ogum, e devoto de Josephine Baker”. Faleceu aos 76 anos.

Dois anos antes de sua morte, no entanto, serviu ainda como referência para o filme “Rainha Diaba”, dirigido por Antônio Carlos Fontoura, com argumento de Plínio Marcos, Milton Gonçalves no papel principal, e a presença marcante de Odete Lara. Interpretado no teatro, título de casa noturna em São Paulo, cantado em música por seu contemporâneo Noel Rosa, Madame Satã foi emblema de muitas faces. Já em 2015, recebeu homenagem da Portela, em enredo que versava sobre os 450 anos da cidade que o abrigou durante a maior parte de sua icônica trajetória. Quando em 2002 virou nome de filme protagonizado por Lázaro Ramos pôde-se constatar como a força de sua luta permanece chocante, irreversível, plástica e assustadora. Como um golpe de capoeira ou uma quebrada dos quadris na dança, em que não se distingue onde começa ou termina o bem do mal, a mulher do homem...

Biografia de Madame Satã escrita por Rogério Durst, com base em artigos de jornal, entrevistas do próprio, de amigos e de conhecidos (Foto: Reprodução)
Esse seu lado protetor o acompanhou até o fim. Ao longo da vida, entre uma prisão e outra – foram 26 processos que resultaram em um total de quase 28 anos encarcerado -, João adotou cinco filhos “de criação”. Em uma das tentativas de levar uma vida fora da malandragem, abriu na Lapa uma pensão para sua amigas prostitutas dormirem, no sentido puro da palavra, afinal, elas também mereciam um descanso.

Apesar da boa intenção, a empreitada acabou lhe rendendo mais uma prisão, já que, na cabeça do delegado, “uma casa com tantas prostitutas tem de ter prostituição”. Satã, que foi convocado à delegacia para testemunhar, apanhou de um dos policiais e acabou revidando. Foi inocentado pelo crime que motivou sua convocação, mas pegou um ano e meio pela agressão.
MULATA DO BALACOCHÊ
Além de malandro, pai, lutador e exímio cozinheiro, Madame Satã foi também a primeira travesti artista do Brasil. Apesar de ter reservado os momentos de feminilidade para o palco, rejeitando fora dele qualquer rótulo que atestasse contra sua fama de “macho”, se apresentava rebolando com uma saia vermelha em teatros da Praça Tiradentes , interpretando um número que ficou clássico em seu repertório com a música “Mulher de Besteira”. Seu sonho era viver uma versão brasileira de sua diva Josephine Baker e, para isso, assumia a alcunha de Mulata do Balacochê.

O primeiro lugar que Madame Satã viveu no Rio, ainda João e antes da fama de malandro, foi a Rua Joaquim e Silva, na região central entre os bairros da Lapa e da Glória, conhecida até hoje entre seus frequentadores como “Beco do Rato”. Foi ali que ele conheceu e ficou amigo da jovem Maria do Carmo Miranda da Cunha, a quem chamava de Bituca e que, anos depois, se tornaria o fenômeno Carmen Miranda, uma de suas principais inspirações para performances.

Cabe aqui um rápido paralelo histórico. No início do século XX, a Joaquim e Silva, como conta uma das atuais moradoras da rua, já era chamada de Beco do Rato por ser o ponto escolhido pelos malandros – também chamados de “ratos”, na época – para repartirem os frutos do dia “de trabalho”.

Com sua inseparável saia vermelha, Madame Satã assumia a alcunha de Mulata do Balacochê para se apresentar pelos teatros da Praça Tiradentes (Foto: Reprodução)
Hoje, mais de 100 anos depois, o beco segue resistindo como ponto da boemia noturna carioca, principalmente durante o Carnaval (como contamos aqui), onde fica apinhado de foliões cheios de glitter, suór e desbunde (a maioria LGBTs, diga-se de passagem).

Também resiste no que diz respeito à população trans: é ali, naquela região, que fica a Casa Nem, o principal reduto de acolhimento para travestis e transexuais no Rio de Janeiro, que hoje sofre com a iminência de um despejo a qualquer momento.

No nº 15, a rua também guarda um dos poucos sobreviventes da época que tiveram contato direto com Madame Satã: Seu Francesco, o sapateiro responsável por calçar João com seus sapatos brancos e amigo pessoal do malandro. Há mais de 50 anos no mesmo ponto, o imigrante italiano lembra com carinho e admiração do amigo: “Ele sentava aqui e ficava horas batendo papo comigo. Entrava e saía a hora que quisesse da prisão de Ilha Grande, ele mesmo falava”, comenta, com o sotaque inconfundível ainda preservado.

Seu Francesco guarda em suas gavetas um recorte de jornal, presente do próprio Madame Satã, que apesar de se declarar antissocial, não negava a fama. “Ele vinha e falava das entrevistas, que saiu no jornal e que até livro tinha lançado. Era um sujeito muito tranquilo, gente boa, todo mundo na rua gostava dele”, recorda.
Madame Satã fotografado com seu chapéu panamá durante um passeio pela Lapa (Foto: Reprodução)
As histórias que Seu Francesco tem para contar de Madame Satã, além do orgulho que o malandro sentia ao falar de seus filhos, são as mesmas que ele repetia para jornalistas e que, inclusive, é recontada pelos clientes da sapataria que ouvem a nossa conversa: ele vivia muito bem arrumado, sempre elegante; fazia questão de ter o sapato brilhando e não saía sem o chapéu panamá; mas também era bom de briga, conseguia derrubar uns 20 só com uma navalha na mão…

Eventualmente, Satã acabou por se isolar na Ilha Grande e não voltou mais para visitar a Lapa ou os amigos da Rua Joaquim e Silva. Na parede, a poucos metros da Casa Nem, uma pintura dele com o inseparável chapéu branco continua ali, observando seu canto, ao lado de pichações como “Meu cu é laico” e “Corpos visíveis travesty”.

Penso no que ele acharia dos novos rumos da região, que voltou a ser tão importante para a cena noturna quanto em seus dias de glória. Como se sentiria ao ver a rua apinhada de pessoas sambando durante o carnaval? Que formas encotraria para proteger a Casa Nem e as meninas que vivem por lá?

E como o seu lado artista reagiria a essa tsunami de talentos como Linn da Quebrada, Liniker, As Bahias e a Cozinha Mineira e tantos outros que, hoje, décadas depois de sua morte, estão conseguindo criar espaço para a arte de pessoas trans no cenário cultural brasileiro?

Até a história de como nasceu a alcunha Madame Satã, um ponto de sua trajetória que também está inevitavelmente ligado à liberdade, passa pelo tino artístico de João. Em 1838, ele foi convencido por amigos a participar do concurso de fantasias do bloco Caçadores de Veados, no Teatro República.

Com capa, máscara e lantejoulas, criou uma roupa inspirada nos morcegos de sua terra e levou o 1º lugar na disputa, faturando um rádio e um enfeite de parede.

Passaram-se os dias e, numa noite em que estava conversando com suas amigas travestis no Passeio, próximo à Cinelândia, o grupo foi todo levado à delegacia de polícia por “vadiagem”.

Chegando lá, o delegado pediu o nome das travestis e, ao ver que João recusava-se a dar qualquer tipo de identificação, o cara o reconheceu como o vencedor do “concurso das bichas”. Associou a fantasia ao filme “Madame Satã” (“Madam Satan”, de Cecil B. DeMille), que acabara de estrear no Brasil, e assim batizou João com o nome que, mesmo a seu contragosto inicial, o acompanharia até o túmulo.Para quem já estudou a história de Madame Satã, houve um ponto crucial para que o mito se mantivesse vivo: sua entrevista para O Pasquim, uma das mais famosas já publicadas pelo jornal, em 1971, seis anos após sua última prisão em Ilha Grande.

Em conversa com Sérgio Cabral, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Chico Júnior, Paulo Garcez, Jaguar e Fortuna, Satã falou abertamente sobre seus casos de polícia, as amizades com gente como Noel Rosa e Chico Alves, os anos encarcerado e alguns dos causos que o imortalizaram no imaginário popular. Até receita de peixada ele passou! Dali, foram extraídas falas que se tornaram quase que bordões do entrevistado, como: “Enquanto eu viver, a Lapa viverá”.

– Você tem consciência de que você é uma figura mitológica no Rio de Janeiro?

– É o que diz a sociedade, não é? Só que tem que eu sou anti-social.

O historiador James N. Green, uma das principais vozes nos estudos do movimento LGBT+ no Brasil, atesta em um artigo sobre a importância da entrevista: “O diálogo entre os intelectuais boêmios dos anos 1960 e a auto-identidade ambígua e fluída de Madame Satã revela uma intrigante remodelação dialética de seu modo de vida”.

Há também o trecho em que o próprio Satã narra um dos principais motivos de seus constantes embates com a polícia:

“Essa mania da polícia chegar, bater e começar a fazer covardia, eu levantava e pedia a eles pra não fazer isso. Afinal de contas, se o sujeito estiver errado, eles que prendam, botem na cadeia, processem, tá certo. Agora, bater no meio da rua fica ridículo. Afinal, nós somos seres humanos”Um dos principais embates entre Madame Satã e a polícia carioca do século XX era sua recusa em aceitar o abuso de poder por parte dos oficias, fosse contra ele ou contra qualquer outro habitante da Lapa (Foto: Reprodução)
Nas palavras de Rogério Durst, a diferença entre João e outros malandros da época foi a que “ele viveu para contar a história; e sabia como conta-la”. O burburinho que seguiu a entrevista d’O Pasquim em torno da figura de Satã elevou o seu status de lenda carioca a personalidade e estrela da época, um sobrevivente dos tempos áureos da Lapa. João começou a receber convites para entrevistas, apareceu no SBT ao lado de Elke Maravilha (com quem se deu super bem, diga-se de passagem) e assinou uma autobiografia que passou a carregar consigo de bar em bar, na tentativa de ganhar um trocado extra.

– Mas você é homossexual?

– Sempre fui, sou e serei.

Mas, como é de se esperar, o tal trocado nunca veio. Madame Satã faleceu em decorrência de um câncer pulmonar, em 1976. Pouco antes de sua morte, foi encontrado por Jaguar e outros amigos, internado como indigente no hospital de Ilha Grande. Nessa época, já tentava levar a vida como cozinheiro, fazendo pratos para festas e casamentos. Em seu enterro, o último desejo cumprido: o de ir embora com seu chapéu panamá e duas rosas vermelhas sobre seu caixão.

Ainda assim, o reconhecimento tardio serviu para lhe proporcionar um último prazer, o sonho de ser um artista reconhecido. Em 1974, dois anos antes de sua morte, ele estrelou a peça “Lampião do Inferno”, vivendo, vejam só a ironia, Satã (ou Satanás, como vocês preferirem). Ao lado de duas atrizes iniciantes, “umas tais de” Elba Ramalho e Tânia Alves, teve seu nome como destaque dos pôsteres que ciruclavam anunciando a montagem e tornou-se a atração principal do espetáculo.

No aniversário de 10 anos da sua morte, O Pasquim publicou uma matéria de capa (acima) sobre Madame Satã, com fotos de sua apresentação em "Lampião do Inferno" e uma entrevista excluiva (Foto: Reprodução)
No aniversário de 10 anos da sua morte, O Pasquim publicou uma matéria de capa (acima) sobre Madame Satã, com fotos de sua apresentação em "Lampião do Inferno" e uma entrevista excluiva (Foto: Reprodução)
Não existe sequer um único registro sobre Satã que não atente para a ambiguidade entre os fatos de ele ser um malandro temido e, ao mesmo tempo, um homossexual assumido. Ele mesmo faz questão de frisar esses dois traços de sua personalidade, sempre que questionado sobre o assunto: “Sempre fui, sou e serei homossexual”, disse a O Pasquim, no mesmo fôlego em que pregava moralismos como “não precisa andar de namorado” e coisas do gênero.

Não existe texto, reportagem, filme, livro, música ou peça de teatro que consiga contar a história inteira e verídica de Madame Satã. Nem ele mesmo, em sua autobiografia narrada a Sylvan Paezzo, em 1972, conseguiu o feito: suas datas não batem com os poucos registros oficiais, suas histórias mudam de versão com outras narrada por ele mesmo. Sua memória, a essa altura, já se mistura entre a lenda criada em volta do mito e os poucos traços que permanecem no conto passado boca-a-boca pela Lapa.

Fato é que a história de Madame Satã se confunde com a do Brasil e a dxs brasileirxs. Sabe-se lá até que ponto o convívio com o jovem João não influenciou a pequena Bituca a se transformar em Carmen Miranda. Ou Elba Ramalho, que era carregada por ele após suas apresentações para cantar nos cabarés e bares da Lapa? E o que ele não conversou com Luiz Carlos Prestes quando ambos estavam simultaneamente encarcerados em Ilha Grande, durante a Ditadura Militar?

Satã esteve sempre ali na história, fosse brindando na Lapa madrugada afora com Chico Anysio e Noel Rosa, fosse espreitando dos cabarés e dos becos do bairro. Suspeito (com quase certeza), que se não fosse preto, pobre e travesti, a história teria lhe tratado com mais respeito, talvez ao ponto de que ele conseguisse mudar a sua própria.

Último registro fotográfico de Madame Satã com vida, feito durante sua estadia no hospital de Ilha Grande, pouco antes de sua morte (Foto: Reprodução)
Último registro fotográfico de Madame Satã com vida, feito durante sua estadia no hospital de Ilha Grande, pouco antes de sua morte (Foto: Reprodução)
Após seu falecimento, ele já foi transformado em peça de teatro pela companhia mineira Grupo dos Dez, que usou sua história em musical para debater a homoafetividade da população negra. Invadiu o audiovisual com a cinebiografia dirigida por Karim Aïnouz e que ajudou a revelar o talento ainda iniciante de um jovem Lázaro Ramos. Virou cifra pelas mãos de artistas como Noel Rosa e até Nação Zumbi, na música “Caranguejo da Praia das Virtudes”. Ironicamente, seu nome rendeu também um inferninho underground em São Paulo, que era a cena do rock paulista na década de 1980.

Hoje, 110 anos após a chegada de Madame Satã ao Rio de Janeiro, e 130 após o suposto fim da escravidão, o Brasil é o lugar que mais mata transexuais no mundo, enquanto a população negra é simultaneamente a que mais morre no país. Enquanto tentamos discutir nesta edição da Híbrida o conceito tantas vezes fajuto de liberdade, fica impossível não lembrar dessa figura que a exerceu em tempos e circunstâncias tão ou mais difíceis do que as encaradas em 2018. Mais do que nunca, é preciso lembrar nossa história para mudar nosso futuro.

Madame Satã, presente

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