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domingo, 8 de setembro de 2013

“O pior é um preto racista” ...


“O pior é um preto racista” quando apontam o oprimido como seu próprio opressor

Na cidade de Charlotte, Estados Unidos, a pastora negra Makeda Pennycooke pediu para que “apenas pessoas brancas” trabalhassem na recepção de fiéis, alegando a “importância da primeira impressão” e justificando que a igreja quer “o melhor do melhor nas portas da frente”. Lamentável! Mas não vou entrar na discussão de como instituições religiosas cristãs perpetuam e reforçam o racismo, o machismo e outros ismos no mundo.
Nas últimas semanas, o que eu ouvi e li — inclusive nos comentários dessa matéria — sobre como existem “negros racistas” que reproduzem discursos e estereótipos também racistas não está nos hieróglifos egípcios (muita gente não sabe, mas o Egito fica no continente africano). Concordo que há pessoas negras que reproduzam discursos racistas. Infelizmente, é esperado que elas existam dada a configuração escravocrata e racialmente desigual na qual se construiu o Brasil.
“Peraí, mas a pastora não é brasileira”, você poderia afirmar. Correto! Ela não é, mas consigo visualizar essa cena acontecendo explicitamente aqui, em terras tropicais, num templo neopetencostal — e de modo mais mascarado em outras instituições religiosas ou não. Por mais que as relações étnico-raciais no Brasil e nos EUA tenham se configurado de forma diferente, a reprodução de discursos racistas por pessoas negras é algo que acontece nas duas nações. O que não se pode afirmar é que essas pessoas negras são racistas. Elas não são. Afinal, não há relação de ganho ou de benefícios quando um negro oprime a si mesmo ou ao seu par. Explico melhor.
Lembremos que quem criou esse cenário de opressão não foi o povo preto. Mas sim os brancos que, durante séculos, estruturaram tão bem a inferiorização do negro a ponto de ele mesmo estigmatizar seu par e seu grupo. Um exemplo declarado dessa construção é a carta-tutorial escrita em 1972 por Willy Lynch, proprietário de escravos no Caribe conhecido por manter controle absoluto sobre os corpos negros que foram colocados em suas mãos. O documento ensina como deixar os escravos submissos e dominados “Verifiquei que entre os escravos existem uma série de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças, aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e a inveja para mantê-los debaixo do meu controle (…) Deveis usar os escravos mais velhos contra os escravos mais jovens e os mais jovens contra os mais velhos. Deveis usar os escravos mais escuros contra os mais claros e os mais claros contra os mais escuros”. Por fim, o autor completa “Se fizerdes intensamente uso delas por um ano o escravo permanecerá completamente dominado. O escravo depois de doutrinado desta maneira permanecerá nesta mentalidade passando-a de geração em geração”.
Foram (e são) séculos de doutrinação e mentalidade racistas passadas de geração em geração. No campo simbólico, os discursos e estereótipos racistas são algumas das ferramentas desse processo de dominação – ambas contribuem para delimitar e limitar o espaço do povo negro na sociedade. Elas (essas ferramentas) reduzem o indivíduo-alvo a meia dúzia de características que vão, além de estigmatizá-lo, determinar o lugar onde ele pode se construir enquanto ser social. Isto é, dizer o que o oprimido deve ou não ser, como deve ou não se portar e até onde pode chegar. No caso da pastora, pessoas negras não podem ser recepcionistas, não podem estar na fachada da igreja porque isso não é o melhor. O “melhor do melhor” é sinônimo de ser branco. No Brasil não é diferente: nas capas de revistas não há preto, nas novelas não há preto, nas dirigências de órgãos e instituições não há pretos... Também porque aqui branco é sinônimo de “melhor do melhor” e esse é quem tem que estar nos espaços de destaques, de frente e de contato com o outro, enquanto o preto fica à margem, nos bastidores.

racismo na igreja2
Imagem de pichação racista na UFBA “Negro só se for na cozinha do RU, cotas não!”

É preciso entender que o processo de dominação foi tão bem introjetado que os próprios oprimidos podem sim reproduzir e contribuir para a opressão que o dominante construiu, mas não tiram benefícios como os reais opressores. A pastora Pennycooke não é racista, tal como os negros apontados como racistas nas últimas semanas. Para os tacharem de racistas, seria preciso que houvesse um dominante que fosse beneficiado às custas do dominado, como o proveito que branco tira do negro que ele historicamente inferiorizou. No caso apresentado, Pennycooke, enquanto pessoa negra, não teve ganho para si mesma ou para o grupo étnico ao qual faz parte. Muito pelo contrário: ela prestou um desserviço, contribuiu para a legitimação de que o negro não deve ocupar certas posições e reforçou a suposta supremacia branca em relação a outras etnias que vive no imaginário da maioria da sociedade.
Isso o que Pennycoke fez e, com certeza, que outros negros fazem não deve servir de estopim para racistas legitimarem seu discurso a partir do “não estou sendo preconceituoso se o próprio negro é diz/faz isso ou aquilo”Mas deve sim ser desconstruído; entendido como um sistema que colocou suas vítimas contra elas próprias, fazendo-as comprarem os discursos do seu algoz; e ensinado o quão prejudicial é para o povo negro a reprodução de falas racistas.
E vou além: para os que só veem “negros sendo racistas”, afirmo que, nesse exclusivo apontamento do oprimido como seu próprio opressor, há mais um tentativa desesperada de se livrar da responsabilidade pelo próprio racismo e manter o status quó de opressão do que fazer um mundo menos intolerante — não cola!

Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no //medium.com/@higorfaria"
fonte portal geledes

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