Carta
da Coordenação Nacional de Entidades Negras (Conen) para a XIV Conferência Nacional de Saúde
“TODOS
USAM O SUS! SUS NA SEGURIDADE SOCIAL, POLÍTICA PÚBLICA E PATRIMÔNIO DO POVO
BRASILEIRO”
O Brasil parece finalmente estar a passar do período
da pós-independência para o período pós-colonial. A entrada neste último
período dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado
com a Independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o
seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não
intencional porque assente na desigualdade natural das raças. Esta constatação
pública é o primeiro passo para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só
ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política desracializante
firme e sustentável. A construção dessa vontade política é um processo
complexo, mas tem a seu favor convenções internacionais e, sobretudo, a força
política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da
discriminação racial. Para ser irreversível, a viragem descolonial tem de
ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no espaço privado, no
trabalho e no lazer, na educação e na saúde.
Boaventura
de Sousa Santos (Folha de São Paulo,
21/08/06)
“Saúde, o feito por fazer”
Retomamos o tema do IV Congresso Brasileiro de Saúde
Coletiva, realizado em 1994, em Recife, pelas possibilidades de reflexões
acerca do processo de articulação, formulação, implantação e implementação da Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN).
Tema provocativo e portador de simbologias que demarcavam a
gravidade da situação sanitária e social da população brasileira, o percurso
difícil e tortuoso do setor no período e o compromisso, que todos deveriam
reafirmar, de continuar nossa luta pelo direito à saúde. (Associação Brasileira
de Pós-Graduação em Saúde Coletiva - Abrasco, 1994)
Assim estamos nos marcos da realização da 14ª Conferência
Nacional de Saúde: “Todos Usam o SUS! SUS na Seguridade Social, Política
Pública e Patrimônio do Povo Brasileiro”, em contexto histórico de
inegáveis avanços institucionais e democráticos que reconhecem a justeza da
política de saúde da população negra como uma das estratégias que materializa a
saúde como direito de todos e dever do Estado, o acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
Todos
usam o Sistema Único de Saúde (SUS), mas nem todos temos garantido o direito à
saúde. O percurso difícil e tortuoso de constituição da PNSIPN demonstra o
feito por fazer, pois, fruto de ampla articulação no âmbito do governo federal,
ao longo dos últimos dezesseis anos, se consideramos a Marcha Zumbi dos
Palmares – contra o racismo, pela cidadania e a vida, em 1995, como um dos seus
marcadores, a Política de Nacional Saúde Integral da População Negra é aprovada
pela Conselho Nacional de Saúde em novembro de 2006, pactuada no Comitê Gestor
Tripartite em maio de 2008, e instituída como política em 13 de maio de 2009,
uma longa jornada pelos meandros da institucionalidade e relações de poder.
Uma
trajetória marcada por fluxos e refluxos, que teve por base a histórica
realização do I Seminário Nacional de Saúde da População Negra, em agosto de 2004, e a constituição do Comitê
Técnico de Saúde da População Negra, no âmbito do Ministério da Saúde.
Este
processo teve na Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (Seppir) um ator fundamental, que possibilitou o diálogo entre ativistas
do movimento de homens e mulheres negras, acadêmicos e o Ministério da Saúde,
em cumprimento à sua missão institucional, como órgão assessor da Presidência
da República, de acompanhar e coordenar ou formular novas políticas de promoção
da igualdade racial.
Dos
percursos tortuosos, o feito por fazer, apesar dos avanços em configurar um
Plano Operativo caracterizado pela
transversalidade, gestão estratégica, solidária e participativa, ações e metas
para serem cumpridas pelos estados, Distrito Federal e municípios, a ousadia de
assumir o racismo como determinante social das condições de saúde da população
negra, após quatro anos, consideradas as fases 1 (2008-2009) e 2 (2010-2011),
pouco ou nada foi feito, apesar da existência de recursos financeiros.
A gravidade da situação sanitária da população negra marcada
pelas mortes precoces, pela violência, por maiores riscos de mortalidade
infantil e mortalidade materna, nos coloca frente aos desafios de, durante a
14ª Conferência Nacional de Saúde, responder quais foram os obstáculos
enfrentados para a implementação da PNSIPN? Quais estratégias de gestão foram
pensadas para a superação destes obstáculos? Por que o pacto de
operacionalização da política não foi cumprido? Por que as instâncias de
controle social não cumprem o seu papel de monitoramento? Qual o melhor arranjo
institucional para cumprir com o feito por fazer? Por que, diante dos dados
epidemiológicos que apontam desigualdades raciais em saúde, o sistema não
considera metas diferenciadas para a superação das mesmas?
Pelo
exposto consideramos que:
Há
necessidade de rever a gestão da política, inserido-a em locus com
capacidade instalada, expertise e poder de indução da política, que no
início de sua formulação encontrava-se na Secretaria Executiva, e que
posteriormente passa a compor uma das áreas da Secretaria de Gestão
Participativa (Segep); o baixo perfil de execução do Plano Operativo requer
análises que permitam avaliar o desempenho da Segep e suas possibilidades de
coordenar a PNSIPN;
Há
necessidade de arranjos institucionais que ampliem a capacidade do sistema em
dar respostas às necessidades de saúde da população negra, ou seja, alianças
com outros setores em condições de dar suporte teórico e metodológico sobre a
desconstrução do racismo em saúde, uma vez que é sobejamente conhecida sua
incapacidade nesta área;
Há
necessidade de indicação de gestores com espaço de poder e capacidade técnica e
política de gerir a política para superação do impasse no qual nos encontramos,
onde as desigualdades raciais em saúde se ampliaram, como é o caso dos
homicídios que vitimizam a juventude negra, oficialmente reconhecido como
genocídio no Mapa da Violência;
Há
necessidade da formação continuada dos/as trabalhadores/as do serviço de saúde
para a implementação da PNSIPN;
Há
necessidade da obrigatoriedade e de manutenção de compromissos assumidos quanto
à coleta e análise de dados desagregados por raça/cor que não tem sido
realizadas de forma sistemática, inviabilizando mais uma vez o conhecimento
sobre a situação de saúde da população negra, como foi o
caso do Suplemento Saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD
2008, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,
por demanda do Ministério da Saúde); a variável consta do questionário, mas não
foi analisada na publicação, dentre outros exemplos;
Há
necessidade de inserção das ações, estratégias de operacionalização,
indicadores e metas da PNSIPN no Contrato Organizativo da Ação Pública de Saúde
em acordo com o Decreto 7508 de 28 de junho de 2011, que regulamenta a Lei
8080/90, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), o
planejamento da saúde, a assistência e a articulação interfederativa, e dá
outras providências.
Cabe portanto à plenária da 14ª Conferência Nacional de
Saúde, nos dias 30 de novembro a 4 de dezembro de 2011, garantir o pleno gozo
do direito à saúde da população negra, reconhecer, em acordo com as diretrizes
da Conferência, as necessidades específicas, condições singulares, contextos
particulares que requerem unidade na diversidade, ou seja, uma política
nacional única com dispositivos organizacionais diversos e respostas
apropriadas para distintas necessidades, pois todos usamos o SUS, mas nós,
negras e negros, não temos garantido o exercício pleno do direito à vida, conforme
demonstram os dados já fartamente conhecidos.
Não podemos mudar o passado, mas com certeza somos
responsáveis pelo presente e a história cobrará nossa omissão.
Brasília/DF
– 20 de outubro de 2011
Colóquio Nacional da Saúde da População Negra,
com a participação de militantes e dirigentes da Coordenação Nacional de
Entidades Negras (Conen) dos seguintes Estados: Acre, Amapá, Bahia, Ceará,
Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba,
Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Santa Catarina,
São Paulo, Sergipe, Tocantins e Distrito Federal.
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