Salvador, 1º de maio de 2011
A
Excelentíssima Senhora Presidenta da República
Dilma Rousseff
Assunto: Aplicação da Lei 10.835/2004, que dispõe sobre a Renda Básica de Cidadania
Senhora Presidenta,
É com imensa honra que me dirijo a Vossa Excelência imbuída da missão de falar, nesta carta, em nome de milhares de sem-vozes e sem-rendas espalhados pelas periferias da Bahia. Para isso, evoco duas forças que sempre me guiam: a Religião e a Justiça; a primeira, representada aqui pelos orixás; e a segunda, pelos ensinamentos de Rui Barbosa.
Um dia o grande deus Olodumare convocou todos os orixás para uma grande reunião em seu palácio, pois queria distribuir entre seus filhos as riquezas do mundo. Iemanjá ficou com o mar, Oxum com o ouro, Oxóssi com as matas e assim por diante, dando a cada orixá um pedaço do mundo, uma parte da natureza, um governo particular.
Cada orixá teria uma parte e, ao mesmo tempo, faria parte do todo exercendo seus direitos e deveres. Dessa maneira, a mitologia dos orixás nos ensina a importância da partilha, da distribuição de riquezas para o pleno funcionamento do nosso universo.
É válido ressaltar que na Terra criada por Obatalá, em Ifé, os orixás e os seres humanos trabalhavam e viviam em igualdade e harmonia. Não havia espaço para injustiças e sim para o “bem”.
Complementando essa introdução, o baiano Rui Barbosa afirma que “só o bem neste mundo é durável, e o bem, politicamente, é toda justiça e liberdade, formas soberanas da autoridade e do direito, da inteligência e do progresso”.
Não há melhor maneira de promover a justiça ou a liberdade do que permitir que o povo tenha direito à renda. No mundo moderno precisamos ter direito à educação, à saúde, à moradia e, entre outros, à renda.
Implementar uma renda básica de cidadania é um gesto que traz em sua essência a promoção do “bem”. Entenda-se “bem” não só como uma qualidade moral, mas também como um estado de bem-estar social.
É preciso reconhecer que o Brasil avançou muito, principalmente no que diz respeito aos ganhos sociais, ao longo dos últimos anos. O ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, materializando a esperança que os trabalhadores depositaram em seus dois mandatos, implantou uma série de políticas sociais que acabaram por frutificar em um novo modelo de desenvolvimento, mais abrangente e sólido.
É inegável que o bolsa família trouxe dignidade a muitas pessoas que não tinham sequer o que comer. Milhões de brasileiros foram beneficiados e hoje fazem três refeições por dia. Em contrapartida, as crianças permanecem mais tempo na escola.
Esse programa modificou não só a renda, mas a consciência dos brasileiros. Em minhas andanças pela Bahia e pelo Brasil, observo que há cada vez menos resistência, por parte da população, dos cidadãos receberem uma renda por meio do Estado, como um direito de cidadania.
Sendo assim, vejo o bolsa família, que conta com uma grande aceitação social, como um caminho direto para a institucionalização do direito à renda.
A eleição de Vossa Excelência permitiu não só a continuidade de um projeto político, mas da caminhada rumo à construção de um direito que une renda e cidadania. Num país onde as mulheres sempre foram deixadas em segundo plano, o fato da sociedade conduzir uma mulher à Presidência da República indica não só uma prova de amadurecimento, mas o começo de um novo tempo.
Tanto no âmbito político-econômico quanto no social-cultural temos as condições necessárias de aprofundar essa revolução que visa transformar o Brasil em um país de todos. É o momento certo de fazermos o bem, de fazermos valer a Lei 10.835/2004, de autoria do senador Eduardo Matarazzo Suplicy.
O bolsa família tem contribuído significativamente para o combate à fome. No entanto, há pessoas que, em função de dificuldades diversas, ainda não têm conseguido o acesso ao benefício de valor ainda modesto. Precisamos dar um passo mais largo nessa luta e focar não apenas o combate, mas a eliminação da miséria, da pobreza absoluta, conforme Vossa Excelência ressaltou em sua posse. E isso, conforme os diagnósticos de número crescente de economistas e estudiosos do assunto nos cinco continentes, será possível por meio da implantação de um programa universal como o previsto na Lei 10.835/2004, aprovado por todos os partidos no Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A lei diz que a Renda Básica de Cidadania será instituída por etapas, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, como, portanto, o faz o bolsa Família, até que um dia se torne universal e incondicional.
A renda básica de cidadania detém um poder imenso, capaz de promover a autoconfiança de um povo que por mais de quinhentos anos se sentiu excluído do seu próprio país. Esse programa tem o poder de integrar um território continental como o nosso, de resgatar dívidas culturais e históricas, de mobilizar sonhos e realidades.
A Lei 10.835/2004 sintetiza o pensamento do saudoso Herbert de Souza, o nosso Betinho, no sentido de que a luta contra a fome e a miséria é uma luta cidadã, que diz respeito a cada um de nós. Precisamos crescer e se desenvolver, mas fazer isso em conjunto, sem deixar ninguém pra trás.
Em um tempo onde a efetivação da cidadania deixou de ser discurso político para ser um anseio social, não há razão para adiar a implantação de um direito que irá beneficiar todos os cidadãos, independentemente de origem, classe, raça, sexo, opção sexual, idade ou religião.
Sou Juíza de Direito há vinte e sete anos. Nesse período, sempre busquei levar a Justiça às comunidades mais pobres da Bahia por meio de projetos de inclusão social. Em minha jornada, perdi a conta de quantas vezes eu testemunhei e vivi o avanço de preconceitos e discriminações sobre negros, mulheres e comunidades pobres, em geral. Pessoas que, por não terem renda, não se acham dignas de procurar a justiça ou de lutar por seus direitos.
Com o bolsa família, muitas pessoas, em suas comunidades, em seus bairros, passaram a se reconhecer como iguais e, assim, lutar por seus direitos.
Se uma revolução desse porte já acontece fruto de um programa de transferência de renda baseado na vulnerabilidade de uma determinada classe social, imagine as mudanças sociais, econômicas e culturais que teremos quando essa renda passar de um auxílio às minorias para um direito que englobe todos os brasileiros.
A renda a ser paga a cada brasileiro deve ser vista como um investimento. Afinal, além de outros benefícios, o mercado interno será fortalecido. Com mais renda, a população consome mais. Com renda para alimentação e educação, o país tem menos doentes nos hospitais, menos crianças vítimas de drogas e violências, mais produtividade em diferentes campos de trabalho e um futuro voltado à prosperidade.
Com uma renda básica de cidadania daríamos adeus não só à pobreza e à fome, mas ao trabalho escravo e desumano que vitima milhares de brasileiros. Daríamos adeus ao triste cenário das crianças que buscam uma renda nos sinais vermelhos; das mulheres que mendigam com filhos no colo nas sarjetas; dos idosos que se humilham por um trocado qualquer de porta em porta.
Daríamos adeus, Excelência, a um Brasil que ainda não superou as mazelas da escravidão. Mazelas que eu, mesmo na condição de Juíza de Direito, ainda sinto na pele. Por saber o que é ser pobre, negra, da periferia, mulher, nordestina e candomblecista, tenho autoridade para afirmar que o projeto do senador Eduardo Suplicy é um divisor de águas na história mundial da cidadania.
O Brasil foi o primeiro país a aprovar a lei para instituir a renda básica de cidadania. Demos um grande passo com a sanção da Lei 10.835, mas precisamos dar continuidade a essa caminhada. Ainda estamos longe da renda básica de cidadania ser aplicada conforme pensada.
É preciso discutir, debater, analisar, pautar esse tema em todos os âmbitos no intuito de encontrar saídas para transformar esse sonho que temos na mão em realidade.
Há indagações naturais: Até a Presidente Dilma, a Juíza Luislinda, o Pelé, a Xuxa e o Antônio Ermírio de Moraes vão receber a Renda Básica de Cidadania? Sim, todas as pessoas, até os estrangeiros residentes no Brasil há cinco anos ou mais. Obviamente, os que têm mais também contribuiriam para que nós mesmos e todos os demais venhamos a receber uma renda capaz de não só trazer dignidade para milhões de pessoas como desenvolver um sentimento coletivo de solidariedade social.
Lembremos que não é o individualismo que define a natureza humana, mas a ação transformadora que se dá pela própria atividade humana e pela sociabilidade. A renda básica de cidadania, portanto, reforça o nosso eu social, o nosso compromisso com a coletividade.
Há enormes vantagens nisso. É muito fácil de a população compreender o princípio de que todos nós devemos participar, pelo menos de uma parte, da riqueza comum da nação. Eliminaremos qualquer burocracia em se ter que saber quanto cada pessoa ganha no mercado formal ou informal. Acabaremos com qualquer estigma ou sentimento de vergonha de a pessoa precisar dizer que não recebe o suficiente para ter que receber o benefício. Não haverá mais o fenômeno da dependência que causa as armadilhas da pobreza ou do desemprego decorrentes dos sistemas em que o benefício é vigente apenas até certo patamar de renda.
É do ponto de vista da dignidade e da liberdade real do ser humano que a renda básica de cidadania apresenta a sua maior vantagem. Para a jovem que, por falta de alternativa para a sua sobrevivência, resolve vender o seu corpo, ou para o jovem que, pela mesma razão, resolve ser um membro da quadrilha de narcotráfico, a existência da renda básica de cidadania lhes permitirá dizer: não, daqui para frente, eu e as pessoas de minha família temos pelo menos o necessário. Poderei aguardar, quem sabe fazer um curso profissional, até que consiga encontrar um trabalho mais de acordo com a minha vocação.
Em sua obra “Renda de Cidadania – a saída é pela porta”, Suplicy nos convida a olhar para o Alasca, que paga, por meio dos royalties do petróleo, uma quantia em dinheiro a todo cidadão sem exigir qualquer contrapartida. Após 28 anos desta experiência, o Alasca se tornou um dos mais igualitários dos 50 estados norte-americanos. Cabe ressaltar que de qualquer forma de riqueza gerada numa comunidade ou nação, sempre se pode separar uma parcela para formar um fundo pertencente a todos.
Com a descoberta do pré-sal e a exploração de outras tantas riquezas naturais - que pertencem aos filhos deste solo - o pagamento de uma renda básica de cidadania pode se tornar possível. O modelo de parceria público-privada adotado no Programa de Aceleração do Crescimento também pode ser uma forma de viabilizar esse pagamento.
Vossa Excelência tem uma grande oportunidade nas mãos: aplicar a renda básica de cidadania e transformar o Brasil em uma vitrine de desenvolvimento social para o restante do planeta que tem na miséria um de seus principais desafios.
O município brasileiro de Santo Antônio do Pinhal, no interior de São Paulo, está construindo esse sonho. Em 2009, o Prefeito José Augusto de Guarnieri Pereira propôs e a Câmara Municipal aprovou a Lei para instituir a Renda Básica de Cidadania e para criar um Fundo de Cidadania de modo a permitir que seus sete mil moradores recebam uma renda básica. Como na lei federal, será feito por etapas. Essa experiência pioneira poderá se constituir em um exemplo a ser seguido por todas as administrações municipais no Brasil, na medida em que contarem com o respaldo da União.
A Lei 10.835/2004 é um instrumento poderoso, capaz de elevar a qualidade de vida brasileira em um curto espaço de tempo. Para viver em harmonia, os seres humanos precisam de água (oxum), de trabalho (ogum), de paz (oxalá), de estudo (iemanjá), de família (nanã), de comida (oxossi). Mas para conseguir tudo isso de forma satisfatória, eles precisam de justiça (xangô).
Precisamos, sobretudo, de uma justiça distributiva, capaz de transformar um país, ainda assolado pela desigualdade, em uma nação. Para isso, toda discriminação, inclusive a socioeconômica, deve ser definitivamente extinguida.
Não tenho dúvidas de que a implantação da renda básica de cidadania pode ser a ação precursora de uma nova civilização, mais justa e igualitária.
Também tenho certeza de que Vossa Excelência é a pessoa certa, no lugar certo e na hora certa no tocante à aplicação desta Lei.
Pode contar comigo e com a Bahia nessa missão de buscar e fazer o bem.
Que Deus e os orixás a protejam e iluminem seu caminho.
Cordialmente,
Luislinda Valois
Juíza de Direito (TJ-BA)
fonte: joselia reis
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