Até a década
de 1980, acreditava-se que todo fígado com acúmulo de gordura e sinais de
inflamação (hepatite) era causado pelo consumo de
álcool. Hoje pode parecer surpreendente, mas esse tipo de alteração é tão comum
em usuários de álcool que mesmo que o paciente negasse o consumo de bebidas
alcoólicas ainda era considerado como se estivesse mentindo. Em 1980, Ludwig e colaboradores
descreveram com o nome esteato-hepatite não-alcoólica
(nonalcoholoic steatohepatitis, NASH) uma síndrome caracterizada por
mulheres obesas e diabéticas que negavam o uso de álcool, mas apresentavam
alterações no fígado muito semelhantes a da hepatite
alcoólica, com aumento
do volume do fígado, alterações em exames laboratoriais e
biópsias com
macrovesículas de gordura (daí o nome esteatose, que vem de gordura)
nos hepatócitos , necrose (morte celular) focal, inflamação e lesões chamadas de
corpúsculos de Mallory (achados até então considerados característicos da
hepatite alcoólica).

O "fígado gorduroso" (F) tem
aspecto mais amarelado e esbranquiçado, geralmente também com um volume um
pouco maior do que o fígado normal (N).
Mesmo com o
reconhecimento de uma doença caracterizada pelo acúmulo de gordura no fígado e,
em alguns casos, inflamação e fibrose (cicatrizes) evoluindo até
cirrose em pacientes sem uso de álcool, ainda restava
um problema: boa parte desses pacientes não eram obesos ou diabéticos e tinham
histórico compatível com o de uma doença infecciosa (históricos de uso de
drogas, transfusões sanguíneas, e outros). Foi a época em que as hepatites
crônicas onde já havia sido descartadas as hepatites A
e B eram chamadas de "hepatite não A não B".
Fígados sem e com esteatose (imagem
histopatológica acima e do órgão abaixo), mostrando o comum aumento do fígado (hepatomegalia)
associado ao acúmulo de gordura.
Em 1989, finalmente
foi descoberto o vírus da hepatite C, responsável
pela grande maioria dessas hepatites. Para complicar, uma das características da
hepatite C é a presença de esteatose, com ou sem inflamação. Assim a esteatose
na ausência de álcool foi quase sinônimo, por algum tempo, de hepatite C. Mas no
final da década de 90 já tínhamos testes disponíveis e confiáveis que deixaram
claro que boa parte das esteatoses não tinham nenhuma relação com álcool ou com
a hepatite C - e que o número de casos estava aumentando de modo alarmante -
coincidindo com a epidemia de obesidade, especialmente nos EUA.
Na última década, o
"fígado gorduroso" tem sido alvo de grande interesse e investigação
científica. Coincidindo com a epidemia de obesidade, o aumento da
disponibilidade do ultrassom,
o hábito crescente de dosar transaminases "de rotina",
em admissão em empresas e antes de iniciar tratamentos com medicamentos
potencialmente tóxicos ao fígado (como para colesterol ou espinhas), observou-se um aumento na incidência de esteatose.
Mais ainda, foi constatado que grande parte
(nos EUA, atualmente é a maioria) dos exames laboratoriais que mostravam destruição de
células do fígado eram causados por uma hepatite associada a essa esteatose.
Estudos populacionais demonstraram ainda que provavelmente grande parte das cirroses
previamente sem causa definida pode ser atribuída a esse tipo de hepatite.
Chamamos de doença
hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA,
ou NAFLD,
do inglês "nonalcoholic fatty liver disease") o acúmulo de gordura
no fígado (esteatose) não relacionada ao uso de álcool. A esteato-hepatite
não-alcoólica (EHNA, ou NASH, do
inglês "nonalcoholic steatohepatitis") é uma DHGNA onde a presença da esteatose
está relacionada a uma inflamação no fígado (hepatite).
Assim, a esteatose hepática ("fígado gorduroso") e a
EHNA
são apresentações diferentes da DHGNA, sendo que a primeira pode evoluir para
a segunda. A cirrose de causa indefinida (criptogênica) onde observa-se
esteatose, mas não há sinais de EHNA ativa, também está classificada como
DHGNA.

A DHGNA
é o conjunto de doenças gordurosas do fígado não relacionadas ao uso de
álcool. A esteatose hepática, ou "fígado gorduroso", é o simples
acúmulo de gorduras nas células do fígado, enquanto que a esteato-hepatite é
o acúmulo de gorduras com inflamação do fígado.
Não há nenhum exame que
distingue a esteatose decorrente do uso de álcool da DHGNA, portanto só
podemos considerar como DHGNA se não houver histórico de uso de álcool ou se
a quantidade ingerida for insuficiente para causar a esteatose. Geralmente considera-se que um consumo inferior a
20 gramas de álcool por semana seria seguro, mas pessoalmente considero
que a variação na sensibilidade individual exige a abstinência completa de
qualquer quantidade de álcool por no mínimo 3 meses para excluir a influência
desse.
Bebida
|
Unidade
|
mL
|
Etanol (g)
|
Cachaça
|
dose
|
50
|
17
|
garrafa
|
660
|
220
|
Destilados (whiskey, vodka)
|
dose
|
50
|
+/- 16
|
Aperitivos (martini, campari)
|
dose
|
50
|
+/- 8
|
Cerveja
|
copo
|
250
|
9
|
lata
|
350
|
13
|
garrafa
|
660
|
25
|
g/L = °GL x 10 x
0,7893
Fonte: Neves, MM e cols. Concentração de etanol em bebidas alcoólicas mais
consumidas no Brasil. GED 8(1):17-20, 1989
Hoje, o termo
DHGNA já é
insuficiente para descrever essa patologia. Já temos mais informações sobre
situações completamente diferentes que podem levar à inflamação observada na EHNA, com
prognósticos e tratamentos distintos. Há uma tendência a se considerar como
DHGNA apenas as esteatoses relacionadas a síndrome metabólica (ver abaixo em etiologia),
mas atualmente a definição acima se mantém.

Fígado
normal
Avaliar quantas pessoas são
portadoras de DHGNA é difícil, não há nenhum método próximo do ideal
para
realizar essa investigação. O método mais simples é a realização de
ultrassonografia, que demonstra achados sugestivos de esteatose ("fígado
brilhante") em mais de 16% das pessoas saudáveis não obesas e em cerca
de
95% dos obesos que fazem uso de álcool. Outros pesquisadores procuraram
determinar a porcentagem de portadores na população a partir de dados de
necrópsia (exames em cadáveres) ou outros métodos de imagem, como
tomografia
computadorizada e ressonância nuclear magnética, mas nenhum dos exames
de imagem
pode diferenciar com segurança apenas a esteatose de esteato-hepatite.
Incidência de DHGNA |
População |
Esteatose |
Esteato-hepatite |
Geral |
10 - 40% |
1,2 - 4,8% |
Saudável, não obesos |
16 - 36% |
2 - 3% |
Obesos |
50 - 95% |
18,5% |
Diabéticos tipo 2 |
28 - 55% |
|
Dislipidêmicos |
20 - 92% |
|
Pré cirurgia bariátrica |
95 - 100% |
25 - 50% |
Síndrome metabólica |
80% |
|
Em relação à
EHNA, estudo
investigando elevações nas transaminases em uma população geral seguida de
exclusão de outras causas demonstrou uma prevalência de 5,5% de suposta
EHNA em adultos norte-americanos. O risco é maior dessa doença principalmente
em obesos, diabéticos e portadores de síndrome metabólica.
Síndrome Metabólica
(presença de 3 dos 5 abaixo)
|
Obesidade central (de tronco)
|
Hiperglicemia
|
Baixo colesterol HDL
|
Hipertrigliceridemia
|
Hipertensão
|
Um estudo que analisou a histologia
hepática em pacientes não selecionados (vítimas fatais de acidentes
automobilísticos) encontrou esteatose em 24%. Outro que analisou necrópsias de
não alcoólatras encontrou esteatose em 35% dos magros e 70% dos obesos, além
de esteato-hepatite em 2,7% dos magros e 18,5% dos obesos.
Esses dados, apesar da
dificuldade em estabelecer uma estatística precisa, sugerem que a
esteato-hepatite não alcoólica seja a principal causa de doença hepática
crônica nos EUA e possivelmente também no Brasil, sendo mais comum do que a hepatite
alcoólica, as hepatites virais B e C
e as demais doenças do fígado que progridem para cirrose.
Assim, como reflexo da epidemia de obesidade e síndrome metabólica nas
últimas décadas, espera-se uma epidemia subseqüente de cirrose e
hepatocarcinoma
causados pelo NASH nas próximas décadas.
Muitas doenças podem se manifestar no fígado como esteatose associada ou não à
inflamação. Algumas estão associadas a distúrbios no metabolismo de gordura em
todo o organismo com o acúmulo de gordura no fígado, mas não necessariamente.
Medicamentos e substâncias tóxicas como a tetraciclina podem levar a inflamação
e degeneração gordurosa do fígado através de lesão nas mitocôndrias do fígado,
levando à incapacidade de metabolizar adequadamente as gorduras no órgão e
ainda levar à destruição de células e inflamação. Outras doenças como as doenças
inflamatórias intestinais (doença de Crohn, retocolite ulcerativa) podem causar
esteatose e inflamação pelo aumento de proteínas inflamatórias e produtos
bacterianos que chegam ao fígado pela veia porta. Outras ainda podem ser
erroneamente diagnosticadas como esteatose por confundirem exames de imagem
(como a doença de Wilson e a
hemocromatose), ou o anátomo-patológico (como
nas glicogenoses, onde o acúmulo de glicogênio
pode ser confundido com esteatose tanto na biópsia quanto nos exames de imagem).
Causas da doença
hepática gordurosa não alcoólica |
Resistência à insulina |
Obesidade, diabetes melito tipo 2, dislipidemias |
Metais |
Antimônio, sais de bário, boratos, fósforo, cromatos, bissulfureto
de carbono, compostos de tálio e urânio |
Drogas citotóxicas |
L-asparaginase, azacitidina, azauridina, metotrexate |
Antibióticos |
Tetraciclina, bleomicina, azaserina, puromicina |
Outras drogas |
Glucocorticóides, antiretrovirais de alta eficácia, amiodarona,
tamoxifeno, estrógenos, varfarina, cis-dicloroetileno, etionina,
bromoetano, hidrazina, maleato de perhexiline, 5-fluoruracil |
Erros inatos do metabolismo |
Doença de Wilson, abetalipoproteinemia,
hepatoesteatose familiar, galactosemia,
doenças de depósito de glicogênio (Pompe,
Von Gierke, Forbes), intolerância
herediária à frutose, homocistinúria, deficiência sistêmica de
carnitina, tirosinemia, síndrome de
Refsum, síndrome de Schwachman, síndrome de Weber-Christian |
Outros |
Hepatite C, HIV, doença inflamatória
intestinal, cirurgia de desvio de intestino delgado, Kwashiorkor e
marasmo, fome e caquexia, nutrição parenteral total, diverticulite,
hepatite autoimune |
A tendência atual é pensar na DHGNA no contexto de distúrbio do metabolismo de
gordura quando as outras causas (tabela acima) forem descartadas ou não fizerem
sentido do ponto de vista clínico e epidemiológico. Assim, vamos focar o
restante do texto nessa situação.
Esteatose
O acúmulo de gordura no interior
dos hepatócitos é um mecanismo natural, utilizado para estocar energia. A
quantidade de energia acumulada na gordura é muito maior que no açúcar ou na
proteína, podendo fornecer ao organismo grande quantidade de energia nos momentos
de necessidade. O fígado mantém dois grandes estoques de energia: a
gordura (especialmente na forma de triglicérides, também chamados de
triacilgliceróis) e o glicogênio, que é uma glicose alterada para ser
estocada. Quando permanecemos em jejum e o nível de açúcar no sangue diminui,
hormônios enviam sinal ao fígado para transformar o glicogênio em glicose e
manter o organismo funcionando. Se a falta de comida persistir, a gordura
começa a ser utilizada, mas este processo é mais demorado. Além disso, estudos
sugerem que as células esteladas do fígado tentam controlar os níveis de colesterol
no sangue transportando o excesso de gorduras para dentro do fígado. Os coelhos, por
exemplo, que não tem células esteladas, sofrem muito mais com o excesso de colesterol.
Há vários motivos pelos quais
o metabolismo natural de gordura pode ser alterado e levar à DHGNA:
-
O mais estudado está relacionado a
resistência dos tecidos ao hormônio insulina, que regula e influencia
todos os processos metabólicos que envolvem açúcares e gorduras. Com a
resistência
à insulina, há aumento da lipólise (transformação dos
lipídeos em ácidos graxos, especialmente na forma de triglicérides),
com o aumento no aporte de ácidos graxos ao fígado.

Triglicérides são moléculas formadas por uma molécula de
glicerol esterificada a três moléculas de ácidos graxos. Na figura, o
glicerol está à esquerda e os três ácidos graxos, de cima para baixo, são
ácido palmítico, ácido oléico e ácido alfa-linoléico. Os triglicérides
são "desmontados" no intestino, absorvidos e depois podem ser
novamente montados no fígado e depositados neste ou nas células de gordura,
aonde normalmente tem a função primária de servir como reserva de energia.
-
A dieta rica em
carboidratos, por oferecer
grande quantidade de energia, permite ao organismo estocar a energia
excedente, principalmente na forma de triglicérides (a presença de
triglicérides em grande quantidade no organismo não significa
necessariamente a ingestão de grande quantidade de gordura, pois mesmo dietas
com pouca gordura, em pessoas com distúrbios metabólicos que estimulam a
produção de gorduras no organismo, poderão apresentar níveis
assustadoramente altos de lipídeos), que são produzidos e acumulados
no fígado.

Mitocôndria
-
A metabolização de ácidos graxos, realizada
em grande parte no interior das mitocôndrias, pode estar prejudicado. Essa
hipótese é sustentada pela demonstração de redução na atividade de
genes que atuam na função mitocondrial em portadores de EHNA.
-
A própria esteatose pode levar a um processo
de retroalimentação positiva ("círculo vicioso") que estimula
os processos anteriores.
Estudos recentes estão ajudando a esclarecer porque o grau de obesidade e de
hipertrigliceridemia (excesso de triglicérides) não está necessariamente relacionado à presença de
esteatose e esteato-hepatite e porque há uma tendência a familiares de
portadores de DHGNA e EHNA a terem maior risco da doença do que pessoas
semelhantes. Diversos genes foram relacionados à maior risco de DHGNA, mas ainda
resta saber como esses genes desencadeiam a doença e, mais importante, se
distúrbios genéticos
diferentes darão origem a tratamentos específicos e mais eficazes para cada
situação.
Esteato-hepatite
A esteatose
hepática, em si, não é uma doença, mas reflete uma doença
metabólica. Infelizmente, por motivos ainda em investigação, o organismo
desencadeia uma inflamação
contra os hepatócitos com acúmulo de gordura, que são gradualmente destruídos
(em alguns casos, ocorre o contrário, uma agressão à mitocôndria ou ao
hepatócito levando ao acúmulo de gordura por interromper o metabolismo da mesma). Dependendo da
intensidade desta destruição, isso pode levar à formação de fibrose
(cicatrizes) que vão se acumulando e progredindo até a formação de nódulos,
o que caracteriza a cirrose.

Um
dos modelos fisiopatológicos para explicar a EHNA (fonte):
Eixo central: a resistência
periférica a insulina resultaria em aumento na entrada de ácidos
graxos livres (AGLs) no fígado, o que causaria um desequilíbrio entre
a oxidação e exportação dos AGLs e sua captação e síntese,
resultando em acúmulo hepático de gordura. Isto resultaria em
produção de espécies reativas de oxigênio (ERO) pela metabolização
pelas vias do citocromo microssomal P450, lipo-oxigenases, peroxisomais
e de beta-oxidação mitocondrial. Estas EROs causam apoptose e necrose
dos hepatócitos, desencadeiam lesão inflamatória e imunomediada e
ativam as células esteladas hepáticas, levando a fibrose hepática.
Stress do retículo
endoplasmático: a presença do aumento da entrada de AGLs no
fígadotambém resulta em stress do retículo endoplasmático dos
hepatócitos e a apoptose dos mesmos, através da ativação da c-Jun
N-terminal Kinase (JNK).
Tecido adiposo: o tecido adiposo secreta adipocitocinas
(incluindo leptina e angiotensinogênio II), que têm participação
direta na regulação do metabolismo dos adipócitos e em vários processos
mediados pela insulina. A adiponectina, outro hormônio produzido pelos
adipócitos), tem propriedades anti-inflamatórias e anti-esteatóticas,
aparentemente protegendo contra a DHGNA. Sua secreção é regulada parcialmente
pelo fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa), cuja síntese é promovida pelo
fator de transcripção nuclear NFβ. A ativação direta
das células esteladas hepáticas também pode ocorrer pela hiperglicemia e
hiperinsulinemia causada por regulação para cima dos fatores de crescimento do
tecido conjuntivo.
|
Os
mecanismos que desencadeiam a hepatite em um paciente com esteatose simples não
são conhecidos, mas estudos recentes já tem mostrado
os mecanismos da inflamação e formação de fibrose. Sabemos que nestes casos
a esteatose é tanto causa quanto resultado da formação de espécies reativas
de oxigênio, peroxidação lipídica e stress oxidativo, redução na função
da cadeia respiratória mitocondrial, depleção de ATPs e produção de
citocinas pró-inflamatórias, incluindo fator de necrose tumoral alfa (TNF-α).
Em modelos animais, observou-se ciclo auto-perpetuado de resistência
insulínica e inflamação pela ativação crônica da quinase inibitória kappa
beta (IKKβ) e interações com o fator de transcripção nuclear NFκβ.
Estudos também demonstraram a natureza pró-fibrogênica (estímulo à fibrose
hepática) pela hiperinsulinemia, hiperglicemia e pela leptina (um hormônio
relacionado à obesidade que está sendo muito estudado no momento).

Fígado com
esteatose. As bolas brancas correspondem as gotículas de gordura, que
desaparecem no preparo da lâmina.
Cerca de 45-100% dos pacientes
não apresentam sintomas. Quando apresentam,
especialmente crianças, os sintomas mais comuns são dor em hipocôndrio
direito, desconforto abdominal, fadiga e indisposição. O aumento do fígado (hepatomegalia) pode ser observado em até 12-95%. As
alterações
laboratoriais mais comuns são elevações de até 5 vezes em AST e
ALT. Outra característica interessante dos
exames laboratoriais é que a relação AST/ALT é menor que 1 em 65-90%.
Quando se torna maior que 1, está ocorrendo progressão da doença com formação de
fibrose e evolução para cirrose. Os níveis
de fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase estão aumentados
em 2 a 3 vezes em menos que 50% dos casos.
O
diagnóstico da doença hepática gordurosa não alcoólica é feito pela
demonstração de acúmulo de gordura no fígado em pacientes com consumo de
álcool insuficiente para levar a esse tipo de alteração (mais uma vez, esse nível é
considerado na maioria dos estudos como inferior a
20 gramas de álcool por semana, embora eu pessoalmente considere que é
necessário, pela falta de um método que diferencie a esteatose alcoólica da
não-alcoólica, um período de abstinência completa superior a 3 meses).

Ecografia (ultrassonografia) mostrando
fígado normal (à esquerda) e com esteatose (à direita). Os feixes sonoros
são refletidos pelo excesso de gordura acumulada no fígado (seta amarela),
impedindo a avaliação de estruturas mais profundas (seta vermelha). A maioria
dos ultrassonografistas classifica este grau de esteatose como "grau
III".
A
demonstração do acúmulo de gordura geralmente é realizada através de exames
complementares de imagem (ecografia, tomografia computadorizada ou
ressonância nuclear magnética). Estes exames são considerados geralmente suficientes
para o diagnóstico da esteatose, podendo também informar se há sinais de
desenvolvimento de cirrose ou de hipertensão
portal. Mas não permitem a diferenciação entre a esteatose e a
esteato-hepatite nem diferenciar graus intermediários de fibrose ou de
atividade da inflamação. É possível diferenciar grosseiramente o acúmulo de
gordura entre leve (grau I), moderada (grau II) e severa (grau III), embora isso
tenha pouca utilidade clínica.


Tomografias computadorizadas mostrando fígado
(seta) normal (à esquerda) e com esteatose (à direita).
No entanto os exames de imagem, especialmente a ultrassonografia, podem errar o
diagnóstico. Doenças como a hemocromatose (onde
há acúmulo de ferro no fígado) e glicogenoses
(acúmulo de metabólitos de glicogênio) podem ser muito semelhantes à esteatose.
Assim, considera-se que o melhor exame para o diagnóstico da esteatose é a
biópsia hepática com análise
histopatológica do material coletado. Além de confirmar a presença do acúmulo de
gordura e diferenciar de outras doenças, permite avaliar se há hepatite e o
quanto a doença está avançada em termos de fibrose.


Biópsia hepática: através desse exame, é possível
avaliar a presença de gotículas de gordura (setas amarelas), células
inflamatórias em permeio aos hepatócitos na hepatite (setas azuis) e a presença
de fibrose (setas vermelhas).
Os principais fatores limitantes à biópsia hepática é que é um exame invasivo
(apesar do risco de complicações ser pequeno, é um exame desconfortável e
necessita de pelo menos um dia de afastamento das atividades habituais) e o fato
da doença não se distribuir necessariamente de forma homogênea no fígado, sendo
possível colher material que não seja representativo do fígado como um todo.
Resistência
à insulina
O
diagnóstico de resistência à insulina geralmente é inicialmente clínico,
observando-se sinais de síndrome metabólica (obesidade e hipertensão
arterial) e complementado com a dosagem no sangue das frações de colesterol,
triglicérides e glicose. Recentemente, desenvolveu-se o índice
HOMA-IR, um método simples de cálculo da resistência à insulina
através da dosagem conjunta de glicose e insulina.

Software gratuito para o cálculo do HOMA2,
oferecido pela Universidade de Oxford (link)
A diferenciação
entre a esteatose "simples" e a esteatose com inflamação associada
nem sempre é fácil e só pode ser confirmada pela biópsia hepática. A
elevação das aminotransferases (AST e ALT), na ausência de outras causas
(como a hepatite C, que tende a cursar com o
aparecimento de uma esteatose), geralmente indica a presença de inflamação.
Um dos sinais laboratoriais mais precoces, apesar de pouco específico, é o
aumento da gama-glutamil transferase (GGT).
A informação mais importante
seria qual a importância prática desta doença. Aparentemente, a grande maioria
das esteatoses não
causa lesão hepática mesmo com 20 anos de acompanhamento. No entanto, nos
pacientes com esteato-hepatite acompanhados por até 9 anos, 27% evoluíram para
fibrose e 19% para cirrose. Acredita-se hoje que
grande parte das cirroses criptogênicas (de causa desconhecida) estejam
relacionadas à EHNA.

História
natural da DHGNA (fonte)
Esteatose
Obesidade
O principal objetivo do tratamento é eliminar os fatores que levaram à
esteatose. Se forem agentes externos como medicamentos, álcool ou outros agentes
tóxicos, eles devem ser eliminados. Se for por diabetes não controlado
adequadamente, o tratamento precisa ser ajustado. Se o indivíduo for obeso, ou
se consumir dieta rica em gorduras e/ou carboidratos, deve perder peso, adequar
a dieta e realizar exercícios físicos apropriados à idade e condição física.
Não há fórmula mágica para isso, ou uma dieta específica para a esteatose. A
redução do peso é condição básica (e muitas vezes suficiente) para o tratamento
da esteatose hepática em obesos. Preferencialmente, essa redução de peso
deve ser feita com acompanhamento médico (com um bom clínico geral ou
endocrinologista) e, se possível, também com nutricionista.

Fígado com esteatose
O orlistat (xenical®) é um medicamento
utilizado no tratamento da obesidade por diminuir a absorção de gorduras pelo
intestino. Sua eficácia na esteatose está relacionada mais à perda de peso do
que ao seu efeito no metabolismo da gorduras, mas seu uso é limitado pelos
efeitos colaterais, principalmente flatulência e diarréia. Há diversos outros
medicamentos que podem ser utilizados no auxílio ao emagrecimento, com eficácia
na esteatose também dependentes da perda de peso, mas menos estudados em relação
a esse objetivo. O médico deve esclarecer ao paciente sobre os riscos
relacionados ao medicamento prescrito (não há fármaco para o tratamento da
obesidade isento de efeitos colaterais) e evitar os que podem causar lesão no
fígado. Cabe ressaltar que medicamentos "naturais" são geralmente erroneamente
tratados como seguros, enquanto muitos são tóxicos ao fígado.
Além da mudança no estilo de vida e do tratamento farmacológico, a
cirurgia bariátrica é uma opção no portador de
esteatose que também é obeso e apresenta síndrome metabólica.
Resistência à insulina
A resistência à insulina, presente na grande maioria dos pacientes com esteatose
hepática, pode ser tratada (além do tratamento da obesidade, se presente) com
insulinossensibilizantes. O mais estudado na esteatose hepática é a metformina
(2 g ao dia), que já é utilizada há muito tempo no tratamento do diabetes e
apresenta como vantagem uma tendência a levar a perda de peso. As
tiazolidinedionas (pioglitazona 30 a 45 mg ao dia e rosiglitazona 4 mg, duas
vezes ao dia) são agentes mais novos e que, ao contrário da metformina, estão
associadas a aumento de peso e um (discutível) aumento no risco de doenças
cardiovasculares. Os três medicamentos já foram analisados em diversos estudos,
com bons (embora variáveis) resultados no tratamento da esteatose e
esteato-hepatite.
Redução nos lipídios
Como a hipertrigliceridemia (quantidade aumentada de triglicérides no sangue) e
níveis baixos de colesterol HDL estão associados à síndrome metabólica e à
esteatose e esteato-hepatite, uma alternativa de tratamento é corrigir esse
problema. A medicação mais estudada para isso é o gemfibrozil (600 mg ao dia por
4 semanas), com pouca eficácia bioquímica. As estatinas, medicamentos de outra
classe, mostraram maior eficácia, mas estão associadas ao risco de toxicidade
hepática.
Esteato-hepatite
Enquanto que o tratamento da esteatose está indicado mais pelos fatores
associados a ela (obesidade, resistência insulínica, hipertrigliceridemia e
síndrome metabólica, que levam a doença cardiovascular, incluindo infarto do
miocárdio e derrame), o da esteato-hepatite é, em si, necessidade de tratamento,
pelo risco de evolução para cirrose hepática e,
subseqüentemente, de insuficiência hepática e
hepatocarcinoma. É importante ressaltar que, como é uma doença reconhecida
há relativamente pouco tempo, ainda não há estudos que demonstrem claramente que
algum tratamento modifique a sua evolução - o que temos são estudos mostrando
melhora ou não em exames laboratoriais e, mais raramente, na inflamação
observada em biópsias.
O tratamento da esteato-hepatite (acúmulo de gordura relacionada a inflamação) é
complementar ao tratamento da esteatose, descrito acima, se o mesmo não for
suficiente. Estudos demonstraram que a dieta com restrição de calorias,
associada a exercícios físicos, reduzem a resistência à insulina e,
conseqüentemente, levam a redução de transaminases em pacientes com EHNA
comprovada, o que significa redução na inflamação. A cirurgia bariátrica também
é uma opção, sendo que a presença de esteato-hepatite associada à obesidade pode
ser, em si, indicação do procedimento se não houver controle adequado da doença
com outras medidas.
Antioxidantes
O objetivo dos antioxidantes não é o de eliminar o depósito de gordura, mas sim
o de reduzir a lesão ao fígado causada pela inflamação. Esse tratamento,
portanto, não tem como objetivo tratar a causa do problema, apenas reduzir a
destruição dos hepatócitos e, espera-se, impedir ou atrasar a progressão da
doença. O antioxidante mais estudado, algumas vezes com ótimos resultados,
outras sem qualquer mudança, é a vitamina E,
com doses entre 400 e 1000 UI por dia. Aparentemente, a vitamina C não leva a
nenhum benefício.
Ácido ursodeoxicólico
O ácido ursodeoxicólico (ursacol®) é um sal biliar mais hidrossolúvel, que
acelera o fluxo biliar, diminuindo o contato da bile com os hepatócitos e,
conseqüentemente, a toxicidade pela mesma. Além disso, por mecanismos
desconhecidos, tem efeito imunomodulatório no fígado, reduzindo a inflamação.
Sua eficácia na esteato-hepatite, na dose de 13 a 15 mg/kg ao dia, é
contraditória nos estudos existentes, tendo a vantagem de ser muito bem
tolerada, apesar de dispendiosa.
A doença hepática gordurosa, sem relação com álcool ou hepatite viral, só foi
reconhecida recente e tardiamente, quando estamos diante de uma epidemia. Em
parte, essa epidemia pode ser explicada pela epidemia de obesidade, mas não
devemos por isso nos deixar cegar ao óbvio problema de que uma parcela
considerável de pacientes com esteato-hepatite, evoluindo ou já com cirrose e
hepatocarcinoma, não são obesos.
A DHGNA pode ser causada pelo modelo obesidade -> resistência insulínica ->
esteatose -> esteato-hepatite, mas também por variações gênico-protéicas que
levam a redução na captação de triglicérides ou na eliminação dos mesmos pelos
hepatócitos, ou comprometendo o metabolismo lipídico nas mitocôndrias, entre
outros, além de outros fatores que podem vir a ser descobertos, como toxinas na
flora intestinal ou ambientais, incluindo na dieta, ou vírus desconhecidos. Se
considerarmos isso, a esteatose hepática (e a EHNA) é apenas uma manifestação
comum de diversas doenças.
A grande maioria dos estudos considera apenas o primeiro modelo como causa da
doença. Com isso, a população estudada pode ter proporções diferentes de
esteatose por causas diferentes, que responderão de forma variada ao tratamento
proposto. Por exemplo, um paciente com esteatose hepática secundária a uma
mutação na proteína liberadora de lipoproteínas (a "porta de saída"de
triglicérides do fígado - se não funcionar como deveria, a gordura não sai e
fica acumulada) não vai responder da mesma forma que um diabético a uma
medicação para controle de diabetes ou à dieta.
Assim, um dos pontos chave no tratamento da esteatose é esclarecer qual a sua
causa, ao invés de tentar todos os tratamentos disponíveis até encontrar o
adequado (o que, infelizmente, pode ser a única estratégia até que tenhamos
mecanismos para esclarecer algumas causas). Outro ponto chave para a maioria dos
pacientes continua sendo a mudança de estilo de vida (perda de peso, dieta e
exercícios), mas quando isso é aplicável. Não há razão para reduzir o peso se o
paciente está com peso adequado, nesse caso é necessário investigar melhor a
causa da doença !
Finalmente, cabe ressaltar que, na maioria dos casos, a esteatose é um achado
fisiológico (normal), que pode ser causado por diversos motivos, entre eles os
mecanismos naturais do organismo de acumular energia em excesso e reduzir a
quantidade de gordura circulante, que poderia se depositar nas artérias e levar
a derrame ou infarto. A esteatose, nessas situações, seria um "sintoma" de outro
problema, que deve ser tratado adequadamente.
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