Diplomata
mostra, em projeto, a existência de hábitos
do Brasil levados por ex-escravos brasileiros que
retornaram à África.
O
doloroso período escravocrata deixou marcas
indeléveis dentro da sociedade brasileira.
Há inúmeros estudos que atestam a importância
da composição dos povos africanos, que
aqui embarcaram como escravos por mais de 250 anos
de tráfico, e que até hoje ajudam a
formar a identidade nacional. O que pouco se sabe
é que em determinados espaços do continente
africano, aspectos culturais brasileiros estão
fortemente presentes c ajudam a compreender a relevância
dos contatos históricos firmados ao longo do
tempo entre o Brasil com a África. O mais curioso,
contudo, é saber que a influência cultural
brasileira se deu por intermédio do processo
de "retorno" de ex-escravos brasileiros,
que libertos, decidiram rumar à África.
Os retornados não só levaram com eles
a vontade de regressar à terra-mãe dos
o seus antepassados, mas também trouxeram hábitos
adquiridos no Brasil e que até hoje se fazem
sentir em quatro países africanos: Nigéria,
Benin,Togo e Gana.Essas
informações e outras estórias
podem ser encontradas no projeto
Cartas d'África, desenvolvido pelo diplomata
de carreira Carlos da Fonseca e que relata como os
"brasileiros", descendentes de escravos
nascidos no Brasil que retornaram
à África em meados do século
XIX, ainda mantêm as tradições
socioculturais brasileiras. Fonseca explica que o
projeto está dividido em três frentes:
fotográfico, histórico e "epistolar",
que se concentra nas cartas dirigidas aos brasileiros
em geral e a seus parentes (pessoas de mesmo sobrenome
que residam no Brasil) em particular e que deu nome
ao projeto.
De acordo com Fonseca, a ideia surgiu após
viagem realizada à África, no final
da década de 1980, quando descobriu a existência
de uma comunidade que se definia como "brasileira"
no Benin."Ainda não
havia lido nada a respeito. Depois me dei conta de
que já havia farta literatura a respeito. Resolvi
pesquisar o assunto", disse Fonseca, em entrevista
à Revista da FCCE. Anos mais tarde, mais precisamente
em 1999, surgiu uma nova oportunidade de viajar ao
continente africano, dessa vez para fazer uma reportagem
para o Correio Braziliense. Ao todo, o diplomata realizou
três viagens para e ficou surpreso com que encontrou
nesses países, em matéria de cultura
e hábitos brasileiros. "A manutenção
da culinária e de algumas expressões
em português usadas no cotidiano chamou bastante
a minha atenção. Verifiquei que as famílias
visitadas comem feijoada, cuzcuz, arroz doce, carne
seca (quando encontram). A língua Ewê,
do Benin, incorporou palavras como cadeira, mesa,
molho. No dia-a-dia, muitos ainda usam saudações
como bom dia, boa tarde. Além disso, preservam
algumas importantes tradições religiosas
e folclóricas brasileiras, como a festa de
Nosso Senhor do Bonfim (no Benin) e, por ocasião
dessa data, o bumba-meu-boi (burrinha)", disse.
Para o diplomata, que atualmente trabalha no Instituto
Rio Branco, o Benin e a Nigéria são
os países nos quais a tradição
é mantida de forma mais viva. "NoTogo
houve, por razões políticas, uma reação
contrária às famílias "brasileiras",
muitas das quais fugiram. Em Gana, a comunidade Tabom
tem especifïcidades próprias, que nada
têm a ver com o resto dos 'brasileiros'",
declarou.
Brazilian Quartet

Fonseca
conta que visitou cerca de 50 famílias. Entre
as histórias ouvidas e pesquisadas, a família
Souza no Benin seja talvez a mais cinematográfica.
"Um filme já foi, inclusive, feito sobre
o personagem central dessa família (Francisco
Félix de Souza): Cobra Verde, do diretor alemão
Werner Herzog, em 1987. No filme, o personagem leva
outro nome, mais é o mesmo", disse. O
baiano Francisco Félix de Souza nasceu em 1771.
Filho de um português com uma escrava, aquela
transgressora união que tanto incendiou as
carnes por estes trópicos, o mulato acabou
alforriado e, aos 17 anos, tomou a decisão
que moldaria a vida de várias gerações
seguintes: mudar-se para a terra de seus antepassados,
a África. Assim, em 1788, Francisco Félix
de Souza desembarcou em Benin e, por ironia do destino,
tornou-se um próspero traficante de escravos.
Morreu aos 94 anos, teve 53 mulheres, oitenta filhos
e 12 000 escravos, deixando aos herdeiros um fabuloso
império de 120 milhões de dólares,
em dinheiro de hoje.
Um outro ponto da pesquisa a receber grande destaque
é o bairro nigeriano chamado Brazilian Quartel,
localizado na cidade de Lagos, ex-capital da Nigéria.
O Brazilian Quartet trata-se do bairro criado pêlos
retornados a partir do final do século XIX.
Grandes e ricas famílias "brasileiras"
viviam em casarões de muitos quartos. "Hoje
sobraram apenas famílias mais pobres. As demais
saíram de lá e foram para partes melhores
da cidade. Para o futuro, Fonseca disse que ainda
pretende continuar pesquisando o assunto, especialmente
para tentar descobrir ramos de famílias de
retornados que ficaram no Brasil. "Há
três famílias com membros aqui e lá
(Nigéria),
que se conhecem
e se comunicam. Aparentemente, haveria também
outras que costumavam se comunicar, mas que foram
se distanciando com o tempo. Quero ver se descubro
algumas delas", afirmou, acrescentando que, em
maio de 2008, ele promoverá uma exposição
com fotos e relatos das famílias "brasileiras"
africanas