Por Nilma Lino Gomes
IntroduçãoA Lei
nº 10.639/03 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e
cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do
ensino fundamental e médio; o Parecer do CNE/CP 03/2004 que aprovou as
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras e
Africanas; e a Resolução CNE/CP 01/2004, que detalha os direitos e as
obrigações dos entes federados ante a implementação da lei compõem um
conjunto de dispositivos legais considerados como indutores de uma
política educacional voltada para a afirmação da diversidade cultural e
da concretização de uma educação das relações étnico-raciais nas
escolas, desencadeada a partir dos anos 2000. É nesse mesmo contexto que
foi aprovado, em 2009, o Plano Nacional das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2009).
O
percurso de normatização decorrente da aprovação da Lei nº 10.639/03
deveria ser mais conhecido pelos educadores e educadoras das escolas
públicas e privadas do país. Ele se insere em um processo de luta pela
superação do racismo na sociedade brasileira e tem como protagonistas o
Movimento Negro e os demais grupos e organizações partícipes da luta
antirracista. Revela também uma inflexão na postura do Estado, ao pôr em
prática iniciativas e práticas de ações afirmativas na educação básica
brasileira, entendidas como uma forma de correção de desigualdades
históricas que incidem sobre a população negra em nosso país.
É
sabido o quanto a produção do conhecimento interferiu e ainda interfere
na construção de representações sobre o negro brasileiro e, no contexto
das relações de poder, tem informado políticas e práticas tanto
conservadoras quanto emancipatórias no trato da questão étnico-racial e
dos seus sujeitos. No início do século XXI, quando o Brasil revela
avanços na implementação da democracia e na superação das desigualdades
sociais e raciais, é também um dever democrático da educação escolar e
das instituições públicas e privadas de ensino a execução de ações,
projetos, práticas, novos desenhos curriculares e novas posturas
pedagógicas que atendam ao preceito legal da educação como um direito
social e incluam nesse o direito à diferença
As ações pedagógicas
voltadas para o cumprimento da Lei nº 10.639/03 e suas formas de
regulamentação se colocam nesse campo. A sanção de tal legislação
significa uma mudança não só nas práticas e nas políticas, mas também no
imaginário pedagógico e na sua relação com o diverso, aqui, neste caso,
representado pelo segmento negro da população.
É nesse contexto
que a referida lei pode ser entendida como uma medida de ação
afirmativa. As ações afirmativas são políticas, projetos e práticas
públicas e privadas que visam à superação de desigualdades que atingem
historicamente determinados grupos sociais, a saber: negros, mulheres,
homossexuais, indígenas, pessoas com deficiência, entre outros. Tais
ações são passíveis de avaliação e têm caráter emergencial, sobretudo no
momento em que entram em vigor. Elas podem ser realizadas por meio de
cotas, projetos, leis, planos de ação, etc. (GOMES, 2001).
É
importante desmistificar a ideia de que tais políticas só podem ser
implementadas por meio da política de cotas e que, na educação, somente o
ensino superior é passível de ações afirmativas. Tais políticas possuem
caráter mais amplo, denso e profundo. Ao considerar essa dimensão, a
Lei nº 10.639/03 pode ser interpretada como uma medida de ação
afirmativa, uma vez que tem como objetivo afirmar o direito à
diversidade étnico-racial na educação escolar, romper com o
silenciamento sobre a realidade africana e afro-brasileira nos
currículos e práticas escolares e afirmar a história, a memória e a
identidade de crianças, adolescentes, jovens e adultos negros na
educação básica e de seus familiares.
Ao introduzir a discussão
sistemática das relações étnico-raciais e da história e cultura
africanas e afro-brasileiras, essa legislação impulsiona mudanças
significativas na escola básica brasileira, articulando o respeito e o
reconhecimento à diversidade étnico-racial com a qualidade social da
educação. Ela altera uma lei nacional e universal, a saber, a Lei nº
9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –,
incluindo e explicitando nesta que o cumprimento da educação enquanto
direito social passa necessariamente pelo atendimento democrático da
diversidade étnico-racial e por um posicionamento político de superação
do racismo e das desigualdades raciais. É importante compreender, então,
que a Lei nº 10.639/03 representa uma importante alteração da LDB, por
isso, o seu cumprimento é obrigatório para todas as escolas e sistemas
de ensino. Estamos falando, portanto, não de uma lei específica, mas,
sim, da legislação que rege toda a educação nacional.
Por mais
que ainda tenhamos resistência em relação ao teor dessa Lei que altera a
LDB e suas Diretrizes Curriculares, e por mais que o seu cumprimento
ainda esteja aquém do esperado, é preciso reconhecer que a sua aprovação
tem causado impactos e inflexões na educação escolar brasileira, como:
ações do MEC e dos sistemas de ensino no que se refere à formação de
professores para a diversidade étnico-racial; novas perspectivas na
pesquisa sobre relações raciais, no Brasil; visibilidade à produção de
intelectuais negros sobre as relações raciais em nossa sociedade;
inserção de docentes da educação básica e superior na temática africana e
afro-brasileira; ampliação da consciência dos educadores de que a
questão étnico-racial diz respeito a toda a sociedade brasileira, e não
somente aos negros; e entendimento do trato pedagógico e democrático da
questão étnico-racial como um direito.
Conquanto um preceito de
caráter nacional, a Lei nº 10.639/03 se volta para a correção de uma
desigualdade histórica que recai sobre um segmento populacional e
étnico-racial específico, ou seja, os negros brasileiros. Ao fazer tal
movimento, o Estado brasileiro, por meio de uma ação educacional, sai do
lugar da neutralidade estatal diante dos efeitos nefastos do racismo na
educação escolar e na produção do conhecimento e se coloca no lugar de
um Estado democrático, que reconhece e respeita as diferenças
étnico-raciais e sabe da importância da sua intervenção na mudança
positiva dessa situação.
Espera-se que, ao longo dos anos, o
caráter emergencial dessa medida de ação afirmativa dê lugar ao seu
total enraizamento enquanto lei nacional, a ponto de passar a fazer
parte do imaginário pedagógico e da política educacional brasileira, e
não mais ser vista como uma legislação específica. Nesse caso, entendida
como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei nº 10.639/03
poderá garantir aquilo que os defensores das ações afirmativas
pleiteiam, ou melhor, que as políticas universais brasileiras incluam e
garantam, de forma explícita, o direito à diferença.
As relações étnico-raciaisTodo
esse processo e a própria existência da Lei nº 10.639/03 se localizam
em um campo mais complexo e tenso, isto é, o contexto das relações
étnico-raciais. Mas, afinal, o que queremos dizer com o termo “relações
étnico-raciais” ao pensarmos em projetos, políticas e práticas voltadas
para a implementação da Lei nº 10.639/03 enquanto uma alteração da Lei
nº 9394/96 – LDB? São relações imersas na alteridade e construídas
historicamente nos contextos de poder e das hierarquias raciais
brasileiras, nos quais a raça opera como forma de classificação social,
demarcação de diferenças e interpretação política e identitária.
Trata-se, portanto, de relações construídas no processo histórico,
social, político, econômico e cultural.
Mas o que queremos dizer
com os conceitos raça e etnia quando os introduzimos na reflexão sobre
as relações étnico-raciais? Nos limites deste artigo, destacaremos
alguns aspectos considerados principais. O primeiro deles se refere à
concepção de raça presente nesta reflexão.
Sociólogos,
antropólogos, psicólogos sociais e educadores, bem como o Movimento
Negro, quando usam o conceito de raça, não o fazem alicerçados na ideia
de raças superiores e inferiores como originalmente foi usado pela
ciência no século XIX. Pelo contrário, usam-no com uma nova
interpretação que se baseia na dimensão social e política dele. E ainda o
empregam porque a discriminação racial e o racismo existentes na
sociedade brasileira se dão não apenas em razão dos aspectos culturais
presentes na história e na vida dos descendentes de africanos, no Brasil
e na diáspora, mas também graças à relação que se faz entre esses e os
aspectos físicos observáveis na estética corporal desses sujeitos.
A
forma como a raça opera em nossa sociedade possibilita, portanto, que
militantes do Movimento Negro e um grupo de intelectuais não abandonem o
conceito de raça para falar sobre a realidade do negro brasileiro, mas o
adotem de maneira ressignificada. Nesse sentido, rejeitam o sentido
biológico de raça, já que todos sabem e concordam com os avanços da
ciência de que não existem raças humanas. O conceito de raça é adotado,
nessa perspectiva, com um significado político e identitário construído
com base na análise do tipo de racismo que existe no contexto
brasileiro, as suas formas de superação e considerando as dimensões
histórica e cultural a que esse processo complexo nos remete.
Não
podemos negar que, na construção das sociedades, na forma como os
negros e os brancos são vistos e tratados no Brasil, a raça tem uma
operacionalidade na cultura e na vida social. Se ela não tivesse esse
peso, as particularidades e características físicas não seriam usadas
por nós para classificar e identificar quem é negro e quem é branco no
Brasil. E mais, não seriam usadas para discriminar e negar direitos e
oportunidades aos negros em nosso país.
É importante destacar
que, nesse sentido, as raças são compreendidas como construções sociais,
políticas e culturais produzidas no contexto das relações de poder ao
longo do processo histórico. Não significam, de forma alguma, um dado da
natureza.2 É na cultura e na vida social que nós aprendemos a enxergar
as raças. Isso significa que aprendemos a ver as pessoas como negras e
brancas e, por conseguinte, a classificá-las e a perceber suas
diferenças no contato social, na forma como somos educados e
socializados a ponto de essas ditas diferenças serem introjetadas em
nossa forma de ser e ver o outro, na nossa subjetividade, nas relações
sociais mais amplas. Aprendemos, na cultura e na sociedade, a perceber
as diferenças, a comparar, a classificar. Se as coisas ficassem só nesse
plano, não teríamos tantos complicadores. O problema é que, nesse mesmo
contexto, aprendemos a hierarquizar as classificações sociais, raciais,
de gênero, entre outras. Ou seja, também vamos aprendendo a tratar as
diferenças de forma desigual.
O segundo aspecto a destacar,
quando adotamos a expressão relações étnico-raciais para compreender as
formas como negros e brancos se relacionam em nosso país, refere-se ao
conceito de etnia. Geralmente, aqueles que o adotam o fazem por acharem
que, se falarmos em raça, mesmo que de forma ressignificada, acabamos
presos ao determinismo biológico, o qual já foi abolido pela biologia e
pela genética.
É fato que, durante muitos anos, o uso do termo
raça na área das ciências, da biologia, nos meios acadêmicos, pelo poder
político e na sociedade, de modo geral, esteve ligado à dominação
político-cultural de um povo em detrimento de outro, de nações em
detrimento de outras, e possibilitou tragédias mundiais, como foi o caso
do nazismo. A Alemanha nazista utilizou-se da ideia de raças humanas
para reforçar a sua tentativa de dominação política e cultural e
penalizou vários grupos sociais e étnicos que viviam na Alemanha e nos
países aliados ao ditador Hitler, no contexto da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945).
O reconhecimento dos horrores causados durante a
Segunda Guerra Mundial levou à reorganização política das nações no
mundo, a fim de se evitar que novas atrocidades baseadas na ideia
biológica de raça fossem cometidas. Nesse momento, o uso do conceito de
etnia ganhou força acadêmica para se referir aos ditos povos diferentes:
judeus, índios, negros, entre outros. A intenção era enfatizar que os
grupos humanos não são marcados por características biológicas, mas,
sim, por processos históricos e culturais (GOMES, 2005).
Ao ser
adotado, o conceito de etnia diz respeito a um grupo que possui algum
grau de coerência e solidariedade, composto de pessoas conscientes, pelo
menos de forma latente, de terem origens e interesses comuns. Sendo
assim, um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor
da população, mas uma agregação cônscia de pessoas unidas ou
proximamente relacionadas por experiências compartilhadas (CASHMORE,
2000, p. 196). Ou ainda, a etnia refere-se a um grupo social cuja
identidade se define pela comunidade de língua, cultura, tradições,
monumentos históricos e territórios (BOBBIO, 1992, p. 449).
Para
entender as relações estabelecidas pelos sujeitos negros na sociedade
brasileira, a forma como se veem e são vistos pelo Outro, a construção e
a lógica das classificações raciais e a vivência de experiências
compartilhadas nas quais a descendência africana e negra se apresenta
como uma forte marca, alguns teóricos indagam o alcance do conceito de
etnia (sobretudo de forma isolada) para se referir ao negro brasileiro.
Segundo estes, o conceito de etnia traz elementos importantes, porém, ao
ser adotado de maneira desarticulada da interpretação ressignificada de
raça, acaba se apresentando insuficiente para compreender os efeitos do
racismo na vida das pessoas negras e nos seus processos identitários
(GOMES, 2005).
Nesse complexo contexto teórico e político vem
sendo adotada a expressão étnico-racial para se referir às questões
concernentes à população negra brasileira, sobretudo, na educação. Mais
do que uma junção dos termos, essa formulação pode ser vista como a
tentativa de sair de um impasse e da postura dicotômica entre os
conceitos de raça e etnia. Demonstra que, para se compreender a
realidade do negro brasileiro, não somente as características físicas e a
classificação racial devem ser consideradas, mas também a dimensão
simbólica, cultural territorial, mítica, política e identitária. Nesse
aspecto, é bom lembrar que nem sempre a forma como a sociedade
classifica racialmente uma pessoa corresponde, necessariamente, à forma
como ela se vê. O que isso significa? Significa que, para compreendermos
as relações étnico-raciais de maneira aprofundada, temos de considerar
os processos identitários vividos pelos sujeitos, os quais interferem no
modo como esses se veem, identificam-se e falam de si mesmos e do seu
pertencimento étnico-racial.
Palavras finaisPor
tudo isso é que dizemos que as diferenças, mais do que dados da
natureza, são construções sociais, culturais, políticas e identitárias.
Aprendemos, desde criança, a olhar, identificar e reconhecer a
diversidade cultural e humana. Contudo, como estamos imersos em relações
de poder e de dominação política e cultural, nem sempre percebemos que
aprendemos a classificar não somente como uma forma de organizar a vida
social, mas também como uma maneira de ver as diferenças e as
semelhanças de forma hierarquizada e dicotômica: perfeições e
imperfeições, beleza e feiúra, inferiores e superiores. Esse olhar e
essa forma de racionalidade precisam ser superados.
A escola tem
papel importante a cumprir nesse debate. E é nesse contexto que se
insere a alteração da LDB, ou seja, a Lei nº 10.639/03. Uma das formas
de interferir pedagogicamente na construção de uma pedagogia da
diversidade e garantir o direito à educação é saber mais sobre a
história e a cultura africanas e afro-brasileiras. Esse entendimento
poderá nos ajudar a superar opiniões preconceituosas sobre os negros, a
África, a diáspora; a denunciar o racismo e a discriminação racial e a
implementar ações afirmativas, rompendo com o mito da democracia racial.
ReferênciasBOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992.
BRASIL,
Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Brasília: SECAD; SEPPIR, jun. 2009.
BRASIL.
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana.
Brasília: SECAD/ME, 2004.
CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001.
GOMES,
Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre
relações raciais no Brasil: uma breve discussão. Educação antirracista:
caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD,
2005. p. 39-62.
GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999.